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segunda-feira, 18 de julho de 2011

Livros, cabras e profetas...

Quanto vale o conhecimento? Quão preciosa é a informação que ilumina nosso caminho, nos afasta da barbárie, nos permite uma convivência mais pacífica e com menos hipocrisia e intolerância? Para mim, esse tipo de informação não tem preço. Ele não devia ser negado a quem quer que fosse. Pelo contrário, ele devia ser incentivado, distribuído; devia estar disponível a todo indivíduo desde a sua infância mais tenra.

Vi recentemente o filme Ágora, que narra os eventos que cercaram a destruição da biblioteca de Alexandria no Egito no contexto do século IV. Escrito por Alejandro Amenábar e Mateo Gil e dirigido pelo primeiro, ele tem entre outros atores, Rachel Weisz no papel da filósofa Hipátia. Antes de mais nada, devo dizer que é uma experiência perturbadora quando penso a respeito... e a fotografia perfeita, que realça nosso mundo esférico girando no espaço visto de cima ao som das pessoas alegando as coisas mais bizarras em contrário acentua esse caráter.

Apesar das concessões dramáticas em favor da narrativa, o filme baseia-se em eventos reais, amplamente documentados. O cristianismo, recém tolerado pelo império com a conversão de Constantino, rapidamente passa a ver como um insulto à sua crença a presença das demais; sua ira se volta contra a cultura dos que chamavam pagãos, e da qual a grande biblioteca era sua máxima expressão. Numa revolta que não tardaria, o caldeirão alimentado pela fé cega faz marchar uma turba desordenada pelos seus corredores e instalações, destruindo e incendiando tudo pelo caminho. Hordas de analfabetos desprovidos de qualquer acesso à mínima informação, ostentavam cruzes e aos berros, transformaram o maior centro de conhecimento do planeta anotações minuciosas e conclusões que demandaram séculos de pesquisa e pensamento investigativo em cinzas. É sintomático que essas mesmas pessoas tenham transformado o local num estábulo para cabras...

Num movimento que só recrudesceria cada vez mais, o cristianismo parte do princípio que a sua suposição de mundo é a única real, não deixando alternativa aos que não acreditam; e vai tomando conta de toda a vida social, depondo governos e impondo uma hegemonia que culminou no que é conhecido hoje como Idade Média ou ‘das trevas’. Seu monopólio era tal que suas normas regiam todos os aspectos da vida social, mantendo o povo convenientemente na ignorância. Eu tenho vontade de rir cada vez que ouço alguém falar que a Igreja foi a forma de manutenção, através de seus escribas, de pensadores e culturas anteriores.

“Fazemos cumprir a palavra de deus”. Quantas vezes na história ainda veríamos esse mesmo tipo de argumento oco e banal, que por ser desprovido de qualquer evidência real, tinha de ser repetido e repetido ao nível da exaustão, imposto sem questionamento por meio da força coercitiva e colocando convenientemente os que se opunham como inimigos não deles, mas de seu próprio pseudo-criador em pessoa. A autoridade dos que alegavam não só que havia um criador como conheciam os seus desígnios era absoluta, em épocas que, usando um eufemismo macabro, você podia ser convidado para um churrasco e ao chegar no local, descobrir que o assado seria você.

Caminhamos muito e realizamos proezas em favor da nossa civilidade; provamos que a terra era redonda, não importa quantas pessoas fossem torturadas. Mostramos que o cozimento de pessoas vivas em óleo não faria a terra voltar a ficar estática no espaço, nem sua órbita ser redonda. Menos ainda que estacas enfiadas ao som do murmúrio das orações do carrasco devolveriam ao nosso pequeno mundinho o status de centro do universo. Demonstramos que mulheres não são uma sub-espécie, nem negros, nem judeus... mas somos uma espécie que tem sérias dificuldades em aprender.

Homoafetivos vivem hoje a mesma bizarra luta pelo direito simples de existir que qualquer um desses, e o argumento dos intolerantes continua sendo tão infundado quanto dos nossos primórdios, em que visões de estrelas, animais de barro e loucos no deserto ditavam o consenso.

A ignorância que se perpetua, não importa o que façamos. Nosso caráter falho e aleatório demonstra a facilidade com que a mente sucumbe às suas limitações mamíferas. Nossa história é, em resumo, um balanço entre o direito das minorias de existir quando a maioria gostaria de bom grado de fechar seus olhos às suas presenças.

No mundo moderno, em que criamos uma sociedade com altíssima tecnologia, com prédios, aviões, internet e sabe-se lá o que mais a seguir, ainda somos por dentro tão frágeis e crédulos quanto nossos antepassados. Ainda tememos os profetas com mensagens convenientemente (para eles) apocalípticas, do paternalismo autoritário e senil de alguém que tudo vê, nada faz, mas a todos pode condenar.

Mas isso, claro, são os pensamentos da vala comum, dos anônimos nas massas do dia a dia, que com razão não tem tempo para pensar na efemeridade da vida (quem teria mal tendo o que comer?). Os próprios tais profetas devem saber (se não forem tão ingênuos) que eles são simplesmente mamíferos que passam adiante a retórica que lhes permite distinção, admiração, favores especiais, e que isso nada tem a ver com a realidade em si. Queimar livros não é uma tentativa de discordância com o que se julga falso, mas uma forma de impedir que outras pessoas vejam a falácia em que se encontram.

Quão preciosa é a informação que ilumina nosso caminho, nos afasta da barbárie, nos permite uma convivência mais pacífica e com menos hipocrisia e intolerância? Para mim, esse tipo de informação não tem preço.