Há
um pouco de exagero nas reações apaixonadas à vaia coletiva que Mehmari
levou numa escola no interior de São Paulo. Foi injusta, sem dúvida e
seu desabafo é um relato cru de quão ruim deve ter sido sua experiência.
Mas por outro lado, acho pouco provável que as crianças ali sabiam de
quem se tratava o pianista e a música que iria tocar.
A ideia
de meninos pobres vaiando Mehmari ou Ernesto Nazaré pode parecer um
sacrilégio para músicos extremamente versados na arte da interpretação
musical, mas dificilmente escandaliza os mais fluentes em interpretação
social. Difundir o acesso à cultura e à expressão pessoal através da
educação musical é uma atitude que todos nós mais ou menos ligados à
essa causa aplaudimos. Mas diferente do que alguns podem pensar, não se
trata necessariamente de empurrar Mozart e Beethoven goela abaixo da
meninada. Por mais contraditório que pareça para alguns, dar critérios
de escolha e meios de expressão musical a um público amplo e irrestrito
pode significar exatamente a diminuição da ênfase nesse repertório e o
surgimento de outros.
Sempre parto do princípio que não existe
nenhum pressuposto de autoridade naquilo que nós, músicos, fazemos.
Todos temos nossas preferências, e no fundo no fundo, a melhor descrição
da realidade nesse aspecto é que existe a música com todos os seus
possíveis desdobramentos... e existe a forma como as diferentes pessoas
se relacionam com todas elas. Ou algumas delas.
Se gostar da
música dita "erudita" fosse um sinal de um discernimento superior, as
salas de concertos não estariam tão cheias de pessoas mais preocupadas
em terem suas presenças notadas do que em buscar ouvir o que aqueles
músicos no palco bravamente tentam mostrar. E se gostar de, digamos,
funk carioca fosse um sinal de estupidez desmedida, teríamos um país
onde seria impossível de coexistir qualquer foma de organização, algo
muito diferente do que temos hoje.
O fato do buraco ser mais
embaixo exige mais daquele que se propõe a entender o mundo como ele é. É
preciso saltar os lugares comuns e as expressões rasas e apressadas
sobre julgamentos de classes sociais com base em preconceitos. A
identificação de alguém com aquilo que exprime o que ela sente é algo
muito pessoal e precisa ser melhor entendido por aqueles que atuam no
fazer musical. Negligenciar isso seria continuar se escandalizando
porque ninguém notou a OSESP no Proms inglês; porque o prefeito do Rio
acenou uma fusão absurda entre das duas orquestras cariocas para uma
cidade que devia ter oito e a única voz que se levantou de fato foi a
dos músicos; ou porque intérpretes refinados como Mehmari podem ser
hostilizados por aqueles pretensamente deveriam agradecer por tê-lo ali
presente.