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quinta-feira, 12 de julho de 2012

Padres e padres

A Igreja Católica teve a sua longeva história marcada por atritos e discordâncias, seguidos de momentos em que a tentativa de contorná-los podia ou não ser bem sucedida. A Reforma e a Contra Reforma demonstram isso em uma perspectiva mais ampla, com a cisão da verdade cristã e o início de uma série de denominações que se multiplicam a cada dia ainda hoje.

Entretanto, ainda que não seja divulgado com a frequência desejada, as atitudes críticas em relação à postura oficial da ICAR aconteceram e acontecem em níveis mais sutis dentro dela própria. Se é certo que essas divergências não se localizam em aspectos fundamentais da doutrina ou provocariam uma nova cisão, também o é que elas podem ser bastante ruidosas e deixar rusgas e marcas entre grupos diferentes, ainda que não sejam visíveis ao público externo.

Acompanho o enterro de Dom Eugênio Sales e o balanço que é feito rapidamente pelos meios de comunicação à sua atuação no que foi o mais longo episcopado do país. Antes de mais nada, uma coisa é certa: ele pode ter sido uma grande pessoa e sua atitude de proteger perseguidos políticos na ditadura pesam muito a seu favor. Não vou cair no erro fácil de julgar a facilidade de fazê-lo quando a ditadura em si já perdia as forças e não representava um perigo tão grande assim; quem vive a sua época é que sabe os perigos a que é submetido.

Mas, ainda assim é preciso que se pontue sua postura conservadora, convenientemente aliada aos interesses do então cardeal Ratzinger. Mais do que isso, ele combateu o envolvimento político das CEBs (comunidades eclesiais de base), especialmente materializados na doutrina conhecida por Teologia da Libertação. As críticas mais comuns que a Igreja fazia ao movimento eram que essa teologia colocava os pobres como elemento mais importante que Jesus. Embora por si uma justificativa absurda, na prática fica ainda pior porque era uma tentativa de impedir que uma interpretação incômoda dos Evangelhos submetesse os poderosos à justiça terrena.

Por ser do interesse da cúria romana, sua ala foi favorecida em detrimento de bispos como D. Paulo Evaristo Arns, Dom Oscar Romeno ou Élder Câmara, que eram alguns dos expoentes da Teologia da Libertação. Nesse sentido sua biografia se apequena; ele pode ter ajudado refugiados políticos, mas esteve longe, muito longe de ter sido uma voz que se levantou contra o regime ditatorial. Como arcebispo de Salvador, teve a mão muitas vezes beijada por Antônio Carlos Magalhães; ele, em pessoa celebrou a missa de corpo presente do filho de ACM, Luis Magalhães, mais recentemente. Ou seja, ele tinha livre acesso aos poderosos. Em entrevistas, dizia-se amigo de generais do regime e que eles respeitavam sua independência. Não parece ter-lhe ocorrido que esse respeito devia-se simplesmente ao fato da sua independência não incomodar em nada o regime em si. Num mundo de carnívoros, Dom Eugênio foi, no máximo, um herbívoro bem intencionado.

A pomba solta dentro da igreja no seu velório, sem ter onde ficar e atordoada por estar num ambiente estranho acabou pousando no caixão de D. Eugênio, numa clara demonstração que era o local mais plano e com menos pessoas perto já que se encontrava longe das demais pessoas que se aglomeravam para vê-lo. Mas longe dessa interpretação dos fatos, leio que sua permanência ali impressionou os fiéis profundamente e que isso poderia apontar como um sinal de santidade do mamífero que jazia dentro do caixão (como se sabe, a pomba é o símbolo do Espírito Santo para muitos cristãos, sobretudo católicos; e um artigo no blog do Nassif evoca semelhante analogia no candomblé). Se isso fosse verdade, e não cogito essa possibilidade nem por um segundo, seria duplamente irônico perceber que a pomba defecou sobre o caixão. E agora, isso também é um sinal...? Ou não é porque estraga a teoria que se quer montar sobre os fatos?