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segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O foco é (e sempre foi) você.

Para quem estuda um instrumento musical, não são poucas as indagações, seja sobre a própria profissão em si, seja sobre aspectos técnicos do fazer musical ou mesmo filosóficos do porquê fazer. Nesse sentido, embora correndo o risco de parecer simplista já que todo músico tem seus próprios dilemas e demônios para contornar, acho que algumas questões são recorrentes e podem ser encontradas em nove de cada dez músicos. Dentre elas, o caráter competitivo obviamente destaca-se, e não é difícil perceber porque.

Ao concorrer a um cargo qualquer, normalmente os critérios de escolha são baseados em audições públicas, que tentam dar conta de avaliar um processo criativo individual da forma mais imparcial possível. Embora as características de cada um sejam levadas em conta, não digo nenhuma novidade ao afirmar que a banca já tem seus próprios critérios que o candidato deve satisfazer. Concepções individualizadas demais são desfavorecidas em prol daqueles músicos que apresentam idéias (sejam elas quais forem) mais coerentes do ponto de vista do ouvinte ali sentado, banca ou não. E, seja como causa ou consequencia, assim formam-se o que chamo de cânones da interpretação, que nada mais são que parâmetros escolhidos arbitrariamente e que passam a ser aceitos por uma comunidade de intérpretes/ouvintes.

Não cabe aqui explorar em que medida isso acontece, mas eu gostaria de me debruçar um pouco sobre os efeitos negativos dessa atitude. Encontrei muitas vezes colegas estudantes frustrados porque se propuseram a um perfil profissional sem compreendê-lo em profundidade. Muitos deles replicam o repertório do instrumento sem uma reflexão mais séria sobre o do porquê fazer, e a balança é definitivamente desequilibrada quando os objetivos limitam-se a executar as obras de maior dificuldade técnica, algumas uma verdadeira provação. E, quase sem perceber, temos uma massa de estudantes de música que replicam os cânones estabelecidos e relegam sua própria criatividade a um segundo plano.

Talvez esse seja um dos problemas pouco fomentados pela academia, embora qualquer pessoa concorde que há obras fundamentais para a criação e o desenvolvimento de um currículo em um instrumento musical. Meu problema não é com esse currículo mas com a forma de abordá-lo. A carga de informação nesses casos é grande, e os campos de estudo que a atividade musical gera só aumentam a cada dia. As conexões entre a música, seus processos de ensino e de performance, bem como a sua compreensão envolvem áreas tão distantes quanto complexas, sendo a didática, a neurologia, a acústica, a filosofia, a história e a anatomia somente algumas delas.

Bach (sério, ao lado), Vivaldi, Brahms, Mozart, Beethoven, Stravisnki, Debussy, Berio, Nielsen e Puccini são nomes que pincei aleatoriamente; todos são grandes compositores que cada, um a seu tempo, compuseram narrativas e estruturas geniais, obras que não por acaso figuram em programas de concerto do mundo todo. Mas, e aqui vai a pergunta central, eu preciso executar um concerto de Nielsen, por exemplo, para ser reconhecido como músico "sério"? Executar bem essas obras deve ser uma condição para que eu seja aceito pelos meus pares? Não são essas obras elas próprias ápices da manifestação de um processo criativo? E se for assim, não perco boa parte da desse processo ao transformá-las em cotas de produção que devem ser cumpridas?

Antes de mais nada, ninguém deve nada. É fato que às vezes nos sujeitamos a repertórios em processos de formação, quando nos submetemos à audições e mesmo na rotina de grupos profissionais de música como bandas e orquestras. No entanto acho importante que mantenhamos acesa lá no fundo aquela chama da curiosidade inicial que nos fez buscar o instrumento como meio de expressão. A experimentação, a pesquisa sobre o que fazemos, as dúvidas sobre o contexto inicial em que cada obra dessa foi produzida, o do porquê devo tocar desse ou daquele jeito; são todos aspectos que, muito mais do que ampliar os horizontes da profissão, permitem uma realização mais completa do indíviduo em si.

Com isso em mente, ir a um master class ou tocar em uma audição pública não deve prioritariamente ser encarado como se o que você está fazendo é bom ou ruim em relação ao outro. O outro não importa muito quando seu maior oponente é você mesmo. É perceber que foram suas pernas que te trouxeram até ali, diante daquele professor e platéia, para executar a obra de alguém, ela própria uma remissão a um contexto específico. Em que medida esse contexto dialoga com o momento em que você toca diz muito mais sobre você mesmo do que sobre a peça. Por isso, um instrumentista não é só mais uma peça nesse conjunto, especialmente pra ele próprio.

As dificuldades de qualquer execução devem ser associadas sempre com o objetivo mais amplo da sua satisfação pessoal em transmitir ou recriar idéias de outras pessoas, desse ou de outros tempos. O que professores e outros estudantes fazem é dar suas próprias impressões sobre o processo. Mas é essencial que você se pergunte o tempo todo o que te move nessa direção, para não acordar num lampejo diante do público perguntando-se o que está fazendo ali tocando uma peça que te diz muito pouco. Acho que você deve se ver como um impulsionador; alguém cujo objeto de estudo é levar adiante as suas melhores idéias, especialmente num mundo onde se diz tanta tolice.

Não quero, entretanto, dizer com isso que se deva ignorar o que se sabe. Nem tampouco que você passe a cochichar um mantra repetindo "eu sou especial; eu sou importante; o universo conspira a meu favor"; nada disso, embora você provavelmente seja especial para alguém. O que proponho é um exercício para reestabelecer suas prioridades em relação ao que estuda e faz, considerando obviamente que você que lê é um musicista.

Porque, no fim, é disso que se trata. Tocar Beethoven ou Stravinski não é um favor para eles; é pouquissímo provável inclusive que eles estejam vendo isso. Também não é para o seu professor, que já tem uma carreira consolidada. Em última instância, é um processo que fala sobre o que você quer dizer; você artista, você criador. Livre das amarras do que a tradição diz que é porque é, é comum começar a sentir o gostinho da realização plena chegando, onde Mozart, Pixinguinha, Nielsen e as canções que sua mãe cantava na infância servem todos a um propósito maior que a mera repetição; servem para a sua satisfação plena como pessoa humana. 

Bach: "aqui pro ceis..."