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terça-feira, 10 de julho de 2012

Divagações de uma viagem na Suiça

Outro dia no trem vindo de Milão a caminho de Lugano vi uma cena que foi ao mesmo tempo constrangedora e didática; constrangedora porque não há como não nos ver na humilhação que outro ser humano passa nas situações mais bizarras desse mundo, e didática porque sintetizou numa única cena materializada bem na minha frente, toda uma relação de poder e exploração, com seus desdobramentos.

Um senhor negro viajava na minha frente (as poltronas são dispostas de uma forma que grupos de quatro pessoas ficam sempre frente a frente) desde Milão, quando vi surgir numa das entradas do vagão em que estávamos os guardas da imigração. Eles fazem revistas rotineiras nessas viagens, e eu mesmo já tinha sido interpelado umas quantas vezes. Sempre bem vestidos, os dois arianos claros como o dia me olharam e gentilmente pediram meu passaporte. Perguntas normais, "onde está indo", essas coisas. Me desejaram bom dia com um sorriso discreto que logo se turvou na face dos dois quando olharam esse senhor à minha frente.

Como se visualizassem uma ameaça até então oculta para as pessoas que ali iam, o tom de voz imediatamente se alterou, frontes crispadas e falando em um italiano alto, eles lhe perguntaram quem era e pediram pra que esvaziasse os bolsos. Bilhetes velhos, um pacote de balas aberto, quinquilharias banais pareceram ganhar contornos de arma secreta para os guardas que examinavam os pertences com luvas de borracha. Pego de surpresa, o bom homem perguntou se tinha algum problema, com uma expressão claramente de quem não entende o tratamento que lhe dispensam. A atitude foi mal interpretada pelos arianos que exigiram que o tal senhor se levantasse. 

Começou um verdadeiro interrogatório na frente de todos, com o pobre homem tremendo e visivelmente consternado por ter sido escolhido como exemplo diante de pessoas que não conhecia, e provavelmente jamais conhecerá. Os guardas, por outro lado, pagos para identificar estereótipos dos quais sua sociedade deve ser resguardada; dos sem cultura, sem educação, vagabundos sem alma que tentam destruir o mundo encantado em que vivem. O diálogo se seguiu por vários minutos, mas confesso que a partir de determinado ponto, eu fui deixando-o em segundo plano. A cena diante de mim falava mais, em um tom muito mais berrante e desagradável, e me foi impossível não transferir minha atenção para ela.

Sabemos que dos altos céus um grupo de dez a quinze pessoas divide esse planetinha de merda de acordo com seus interesses; eles controlam sistemas políticos, o consumo, as crenças, a cultura. E suas atitudes nunca refletiram uma única preocupação com as consequências que o jogo de quem tem mais causa nas pessoas. Pois eis que aqui no mundo real, num dos trens do melhor sistema de transporte do planeta e bem diante de mim, dois indivíduos bem empregados de um país onde investimento não falta mas cujo manutenção vem diretamente do investimento de tudo que é roubado e surrupiado em várias países do globo, achacavam diante de si um perplexo senhor, provavelmente vítima dessa exploração em seu país de origem e obrigado a procurar emprego em outras pastagens.

Não havia de quem cobrar a conta. Pouco adiantava, se ele tivesse consciência disso, dizer ali que os papéis estavam invertidos; que ele não era o marginal, que não era sua culpa ter sido explorado ao ponto de sair pelo mundo em busca de sobrevivência. Dizer ali que deviam ser eles a lhe pedir desculpas por apoiar e louvar esse sistema, de um país que sequer se importa de onde vem o dinheiro que irriga as obesas contas que são sua principal fonte de renda. Que ele já havia sofrido o suficiente por uma vida só e que não se fala assim com outro ser humano, especialmente estando triplamente errado como no caso deles.

Mas essas foram divagações da minha cabeça. No mundo real diante de mim, o homem era levado corredor à fora, à vista de pessoas em cujo olhar transparecia, como último insulto, um sentimento de desprezo para com aquele que ali ia, ainda que todos nós, eu, o senhor negro, os guardas arianos, senhores e senhoras de bem ali sentados, tenhamos descendido da mesma ameba e fossemos, por isso mesmo, todos irmãos de uma mesma raça. Convenientemente dividida para que se culpe uns aos outros lá na terra pelo infortúnio que vivem, enquanto seus mandantes lá no céu gozam da reputação de continuarem sendo sagrados.