Não é novidade alguma para os músicos de bandas
escolares, municipais e de igrejas de todo o país que as bandas militares
representam uma oportunidade visível para uma carreira estável. Músicos
adolescentes se vêem nas fardas oficiais das três forças e tem nelas uma
promessa de seguir adiante aliando o que gostam de fazer com o ideal de uma
profissão. E isso ainda torna mais difícil a adaptação quando muitos deles
conseguem atingir essa meta e percebem que o meio, infelizmente, deixa muito a
desejar quanto à profissionalização.
Quando você passa a conhecer a realidade que há
por trás daquelas apresentações em praça pública que tanto incentivam esses
jovens músicos, percebe que há um abismo de diferença entre a promessa e a
realização, entre o sonho e a realidade. A rotina de competir para quem estuda
mais (ou quem "toca mais") tão presente na vida das bandas civis
contrasta imediatamente com a rotina diária em bandas militares. Nelas,
profissionalizar-se é uma quimera, uma ingenuidade adolescente e sem futuro.
Mais do que isso, é uma atitude indesejável e sem o menor traço de estima pela
visão institucional dominante. Escondidos em hierarquias, graduações e
patentes, muitos deles justificam essa postura com os argumentos mais variados
e rasos possíveis; a ausência de um aumento financeiro, a inexistência de uma
obrigação legal que faça com que isso seja praticado, a inveja pura e simples,
e por aí vai.
O desrespeito à profissão de músico nas casernas
é antigo e reflexo de uma série de fatores. Antes de mais nada, a própria
incapacidade de comandantes de perceber o potencial literalmente inaudito
desses homens e mulheres que compõe suas fileiras. Mas avança ainda mais; num
mundo de sobras e migalhas, aqueles que as distribuem adquirem na sua própria
visão um prestígio sem paralelo com nada do que teriam na sua vida cotidiana.
Sem uma política institucional digna, a classe é deixada à mercê de líderes
absolutamente incapazes e interesses variados e, às vezes, mesquinhos. Regentes
desprovidos de talento e, muito pior, sem formação alguma arrotam sua
ignorância abissal ao se vangloriar disso; ao se exporem diante de quarenta
instrumentistas à sua frente sem ter uma vaga ideia do que fazem ali, eles não
percebem o papel ridículo que representam para si e seus pares. É um jargão
conhecido que os ensaios são feitos para "dar uma passadinha na
música", e muitas das chamadas rotinas semanais constituem-se de uma
tentativa canhestra de parecer que se faz algo, só para que o chefe da seção ao
lado não perceba a inércia motivacional.
O grupo de percussionistas das Forças Armadas da Suiça mostra num espetáculo que alia um rigoroso treinamento musical com o aspecto cênico e performático. Um exemplo que a música em bandas militares pode se valer da disciplina com resultados extremamente positivos.
No período em que pertenci a esse meio, vi e participei
de alguns dos maiores absurdos que não achei que veria em vida: o caminhar
muitas vezes de um lado pra outro no sol sem saber o porquê; tentativas de
melhorias das condições de trabalho serem rejeitadas porque “vai trazer muito
serviço”; regentes desesperados por um sinal visual durante a música para saber
onde andavam na partitura e quando deveriam encerrar a música; a atitude
debochada e sem paralelo dos que sempre julgaram sua posição hierárquica uma justificativa
para que a sua estupidez fosse não só tolerada, como também aceita e seguida; e
ainda a humilhação degradante e de forma pública de uma voz discordante,
independente das suas razões serem acertadas. As exceções existem em grande
número, e muitos dos melhores músicos que conheci pertencem a essas bandas. Mas
eles representam uma minoria cuja individualidade vai se corroendo com o tempo
porque ninguém aguenta viver contra um sistema inteiro o tempo todo.
Costumo dizer que as bandas militares ainda
procuram seu lugar enquanto instituição. Elas não se encontraram ainda e talvez
todo esse conjunto frustrante de experiências colhidas por mim e outras pessoas
sejam um tipo de assentamento tectônico natural para que as arestas sejam
aparadas e alguém finalmente tome uma atitude em relação à isso. Mas esse
continente se move devagar e não há demonstração de uma saída a médio prazo. A
impermeabilidade desse meio faz com que as mudanças dificilmente sejam vistas
como coisa boa.
Por outro lado, as saídas existem, e são várias;
para começo de conversa, atacar a formação é fundamental. A abertura de
concursos independentes para regentes com formação na área seria uma forma de
garantir que aquele que está à frente do grupo possua pelo menos a condição
mínima de falar sobre aquilo que exerce e conduzir um ensaio adequadamente. A
valorização de grupos de câmara dentro dos naipes de instrumentos com trabalhos
paralelos ao da banda em si, com horários de ensaios definidos, rotinas de
trabalho e apresentações próprias também são uma forma de dinamizar e
incentivar. A criação de uma estrutura interna saudável de trabalho, com
setores independentes para a digitação de partituras e manutenção de arquivo, o
secretariado e trabalhos burocráticos, uma comissão de relações públicas pronta
a dar declarações e entrevistas sobre música e afins, projetos dinamizados que
incluam a formação de plateias em escolas e eventos públicos.
Além desses, pessoalmente tenho a convicção que
um grupo de quarenta profissionais usados única e exclusivamente para atender a
uma demanda interna de um desfile semanal é subaproveitar o material humano em
mãos. Parcerias entre governos federal, estadual e municipal poderiam usar os
voluntários desses meios na criação e manutenção de bandas de música pelo país
a fora e que tantas vezes são mantidas muito mais por entusiastas mas sem uma
opinião mais adequada sobre a prática do fazer musical.
Ver a banda passar pode ser uma atividade prazerosa
e da qual as lembranças são sempre vivas na memória. Mas é preciso notar que,
se tal qual na música de Chico Buarque, tudo volta ao normal depois que ela
passa, também para as bandas militares os curtos momentos nas suas
apresentações podem representar também para eles um acontecimento fora do
usual, onde tudo volta ao normal quando retornam à sua realidade pouco
estimulante.