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quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Minha doce Santa Maria, e o gosto amargo da tragédia

Este é um post de pesar profundo. Passe anos da minha vida criticando e batendo sobre coisas que considero equivocadas; descaso, corrupção, barbárie, a prepotência dos que se consideram acima de qualquer coisa, a impotência dos que são obrigados a viver sob a sua égide. Pois eis que, macabramente, muitas dessas características e outras mais se agruparam em torno desse assassinato em massa promovido numa boate em Santa Maria. Palavras não dão conta de explicar o que se sente e ainda assim, palavras precisam ser ditas.

Frente à uma tragédia cerceada de erros primários, estúpidos, fáceis de se evitar, a dúvida principal nem chega a ser o que leva um empresário que ganha rios de dinheiro a ser tão ganacioso a ponto de não investir no mínimo de segurança às pessoas que frequentam o ambiente; nem porque diabos atirar fogos em locais fechados parece uma alternativa "saudável" de diversão para essas bandas de agora. A principal dúvida é onde nós estamos a ponto de permitir isso nos dias de hoje. Nós, homens e mulheres, pais e filhos que nos acostumamos a ser tratados com desdém; que parecemos não ver problemas com o descaso, a ganância, a hipocrisia.

Estamos tão embebidos na nossa novela diária, no brasileirão de futebol, lendo recortes cuidadosamente escolhidos por quem controla os jornais que fomos completamente alijados da nossa capacidade crítica. A declaração é dura, mas como eu falei, palavras precisam ser ditas. E o modelo de sociedade que temos tem que ser revisto; se deixamos alguém cuidando do acampamento enquanto dormimos acreditando-nos seguros mas somos constantemente acordados aos sobresaltos sem entender o porque aquilo ocorre, há algo muito errado no ar.

E o porquê disso está aí, estampado em jornais do mundo inteiro; os mesmo jornais que silenciam de problemas reais no dia-a-dia com matérias que poderiam salvar vidas. Ou alguém duvida que se um jornalista se dispusesse a fazer matérias isentas sobre o funcionamento dessas boates seria proibido pelo próprio editor do jornal? Esse jornalista estaria contrariando os interesses que mandam e ditam o que faz parte do nosso cotidiano. E o que não.

As críticas dos especialistas em cada área pululam nesse momento. Bom, para uma infinidade de vidas destroçadas, elas de nada adiantam agora. Quase duzentos e quarenta mortos, o horror nas lembranças que acompanharão por anos a fio os que sobreviveram; mais a dor definitiva que agora habitam seus pais, amigos e parentes mais próximos, a comoção que isso causa nas pessoas que não perderam ninguém diretamente, mas sabem que o sino que bate por cada um de nós fazer morrer um pouco de todos nós.

Mas a rota do planeta não se altera. Materiais inflamáveis em contato com o fogo continuarão a queimar quase instantaneamente; lugares apertados continuarão a não dar vasão a uma grande quantidade de pessoas no mesmo momento. E aparentemente, essa visão de diversão incrustrada nas pessoas de que uma casa noturna precisa ser como um curral humano provavelmente não irá mudar muito. A questão que fica agora é uma grande interrogação pairando sobre todos aqueles corpos de jovens universitários. 

Algumas pessoas se apressam em responder; "estava na hora deles", "Deus chamou-os pra perto", "Deus conforte essas famílias". Bom, um observador imparcial e sem papas na língua perguntaria onde estava essa proteção toda que, se de fato vê a tudo e a todos, observou o pânico e o horror de mais de cem pessoas que no escuro absoluto confundiram a saída principal com o banheiro e morreram todos lá sufocados e amontoados, e nada fez para impedir. 

Tentamos o tempo todo contornar o mundo real, porque ele nos desagrada profundamente. A ideia que todos eles estão num lugar melhor nos daria conforto de fato. Mas o nosso conforto pode em nada corresponder ao que de fato ocorre no mundo real, assim como a fé na cura de uma doença grave enche os olhos de lágrimas de quem passou pela experiência, somente para ver o retorno da doença meses depois e vir a falecer dela. Além do mais, em nada ajuda se pensarmos que ele serve pra diminuir a indignação; a não ver as causas reais desse assassinato onde elas estão e buscar explicações que, de alguma forma nos digam que há um plano maior naquilo tudo, que a vida de tantas pessoas gentis, educadas e simples não podem ser riscadas assim abruptamente sem um motivo digno.

Acompanhei uma das declarações da coordenadora dos psicólogos e terapeutas envolvidos no atendimento aos familiares e profissionais envolvidos no resgate. Ela dizia que, quando a família chegava ao funeral e encontravam o caixão fechado, esses profissionais são orientados a abrir para que as pessoas vejam que de fato, aconteceu. Pode parecer duro, mas há uma explicação plausível e convincente pra isso. Segundo ela, a negação da morte costuma desenvolver traumas que acompanhama  vida de muitas pessoas que ficam. Ninguém quer perder um ente querido e a dor é angustiante, definitiva, sem alívio naquele momento. Mas, para o bem e para o mal, é assim que o mundo é.

Se construímos nossa civilidade  sobre os frágeis alicerces da negação de como o mundo real funciona e permitindo que um sistema injusto em que alguns poucos gerenciem o que é de todos às custas de cuidados básicos que são indispensáveis, inventar desculpas e buscar refugio na ilusão sobrenatural não ajuda aqueles que ficam aqui nesse mundo. Temos sim de chorar os nossos mortos. Temos de atravessar o vale de lágrimas a que estamos todos sujeitos num mundo que não entendemos bem. Mas temos também de começar a cobrar de quem de direito; de mostrar que a vida ceifada não pode ser em vão. Não deve.

E finalizo deixando o link para as fotos dos que pereceram na boate em Santa Maria. Na feição de cada um, um sorriso satisfeito de quem buscou seu melhor ângulo para ser visto pelos outros. Olhá-los agora torna o inacreditável palpável, humano, real. E faz a indignação chegar aos limites que já não podem ser contidos por discursos de consolo de nenhum tipo.