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quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Ainda sobre a apresentação do quarteto... aprofundando...........

Um intermezzo para a seqüencia de piadas e tiradas cômicas que postei aqui... ficou um pouco extenso, mas imprescindível para o que quero dizer. 


Como intérprete, venho pensado na natureza e na função da música a muito tempo, mas são acontecimentos como a apresentação do quarteto de clarinetas que evidenciam pra mim essa questão de forma mais convincente. Frequentemente se vê-ouve-lê nos meios de divulgação sobre o "poder terapêutico" da música, que pode ser traduzido no caso da apresentação do quarteto de clarinetas que mostrei antes como uma idéia excelente, já que a música serviria para "acalmar" e "trazer conforto à alma". Ou ainda, no caso clássico em que uma escola resolve combater a violência com aulas de flauta doce, cuja apresentação dos alunos tocando é, evidentemente, a superfície demonstrável do processo. Como não podia deixar de ser, essas apresentações são "prato cheio" nas matérias veiculadas na tv sobre o assunto, quando é o caso. A ironia é a exposição de alunos com habilidades não plenamente desenvolvidas como um processo acabado, com um fim em si mesma, com um resultado sonoro que chega a ser "violento" em certos casos...  (felizmente não foi o do quarteto, que fique claro...).


Se você chegou até aqui, deve estar pensando que os reflexos do que falei conduzem a uma crítica indireta à musicoterapia (agora não tão indireta já que dei "nomes aos bois''), que pode ser traduzida livremente como a terapia através da música.  Bom, e é uma crítica, de certa maneira. Não que eu discorde completamente que a audição de música possa transmitir essas sensações; a questão aqui é a redução meramente funcional de uma capacidade criadora e recriadora que a música traz consigo e que considero vital.


Nessa esteira, vê-se CD's de música New Age (Nova Era, não me pergunte o porquê...) e sob cujo rótulo são abrigados todo tipo de produção cultural e folclórica fora da tradição musical ocidental, mas com uma característica fundamental: a "beleza" das melodias, a "mística" dos sinos, o "som dos anjos", etc. Cantoras como Enya e Lorena McKennitt são postas lado a lado com os cânticos dos monges tibetanos, tocadores de cítaras indianos, tambores e coros africanos, flautas e sinos japoneses, flautas pan na "música dos incas" e todo tipo de exotismo, desde que desprovidos do seu "caráter bárbaro".


A beleza é uma qualidade intrínseca da música em si, mas reduzir a diversidade do que ela pode exprimir nisso é ter uma atitude muito pequena... incompleta mesmo. Como é incompleto (ou não se coloca na perspectiva correta) quando se afirma que a música têm como função principal "acalmar", "desestressar", "relaxar" as pessoas do inferno diário e da correria dos grandes centros... para as pessoas que buscam na melodia romântica a razão de ser e de sentir da experiência musical, é claro que a música contemporânea vai parecer um monte de ruído sem sentido. Aliás, o mesmo é válido para a música de outras culturas que não a nossa, mas também a pintura e a escultura, para citar dois exemplos próximos...


Penso como músico que existe uma função social importante com aquilo que faço e que não me admira que essa função seja praticamente ignorada pelos investimentos estatais, tanto quanto por certos segmentos da sociedade em si por pura conveniência...  é muito melhor que as artes em geral sejam encaradas como formas de distração, diversão, ou pior, "entretenimento" (detesto essa em particular), do que como uma forma de expressão legítma, como um testemunho vivo, real e presente de um legado (na maioria das vezes ainda que póstumo) de mulheres e homens com suas alegrias, mas também medos, angústias, dúvidas; vista dessa forma, a música e as artes em geral podem levar a perguntas silenciosas que, embora não sejam pronunciadas na maioria das vezes, são embaraçosas e questionam muito daquilo que é imposto ou pré-estabelecido.


Faça uma experiência: ouça uma obra chamada "Quarteto para o fim dos tempos" (no original em francês, Quatuor pour la fin du temps), do compositor francês Oliver Messiaen. Nas primeiras audições, devo admitir que já achei a peça uma chatice total. Todos os oito movimentos  (III, IV, V, VI, VII, VIII) me passaram uma impressão de profunda angústia desde o começo. Mas então, eu tive contato com o contexto da sua produção e do compositor; religioso devoto, Messiaen estava preso num campo de concentração nazista quando compôs e estreou-a (aliás, com os músicos disponíveis na ocasião), exatamente em 15 de janeiro de 1941. Num local desses, com dor, a tortura, e a proximidade com a morte tão eminente, é possível imaginar o ambiente em que foi executada. Desde então, o quarteto de Messiaen é pra mim um testemunho que se renova a cada performance; um lembrete do que já fomos capazes de fazer enquanto espécie... e do que ainda fazemos hoje (não sei você, pra mim é impossível não ouvir a obra sem me transportar pra o ambiente lúgubre em que foi escrita; e a pergunta seguinte é: afinal, que necessidade havia naquilo tudo?)...


Numa parcela muito menos intensa, mas não menos importante, eu percebo que a comoção causada pela apresentação do nosso quarteto de clarinetas no hospital que citei antes (com ambições infinitamente mais modestas...), não se deve só à "beleza" das melodias. Pessoalmente, acredito que o choro ou o riso nessas ocasiões trazem à tona as emoções que sempre tivemos; nossa alegria e saudade, nossa tristeza, nossos medos, a nossa incapacidade nata de lidar com a perda de alguém próximo, querido... nossa incompreensão diante do sofrimento de pessoas boas que conhecemos, e na prosperidade de quem deseja esse sofrimento nos outros ("a justiça é moral, a injustiça não." Ferreira Gullar)... e considero até legítimo sentir a necessidade de fuga, buscando paliativos que nos façam esquecer, como algumas das mais mirabolantes e primitivas crenças e supertições, o álcool e as drogas em excesso, Richard Clayderman...
Entretanto, isso é um grande engano, porque negar a nossa complexidade paradoxal não nos torna mais simples e menos difíceis de entender. E isso também é aplicável nos vários aspectos da vida, dos quais a música é parte integrante...  
 
Frequentemente, embora a manipulação deliberada tente esconder ou extirpar a complexidade musical, acordes dissonantes "perturbam" a homogeneidade melódica e a igualdade ritmica é "pervertida" pela pluralidade de pulsações quase tribais. Uma música que incorpora as mais perfeitas consonâncias mas também as dissonâncias mais terríveis e insolúveis,  é também aquela que incorpora a beleza mas também a angústia, a calma e a tranquilidade mas também a revolta e o desânimo, a felicidade mas também a incerteza e a decepção. Não se trata simplesmente de oferecer conforto, criar a ilusão do bem estar... mas de mover nosso ponto de equilíbrio para longe do nosso habitual, mexer em hábitos e regras sociais estabelecidas não se sabe por quem e que são descabidas atualmente, bem como "desacreditar" crenças sedimentadas com base em impressões e imposições dos outros e sem razão aparente.


Nesses sentido, as artes oferecem uma visão de mundo muito mais robusta que aquela fornecida por instituições sociais caducas, ou pelo consolo frágil da religião. Quando pisam em você, a calma de um monge budista é tudo o que você NÃO QUER... quando a tristeza e a saudade apertam, nós eventualmente choramos, e o choro não "purifica" nada... como diz Ferreira Gullar, o sofrimento não tem valor algum, não acende um halo em torno da  nossa cabeça, nem nossa dor é especial se comparada a todos os que sofrem no mundo; pessoas, os outros animais, criaturas microscópicas com minutos de vida... apenas parte do que somos é permitido entender pelas perspectivas tradicionais, já que as normas sociais reprimem nosso lado selvagem e indomável e a religião o nega.  As artes nos colocam diante do que realmente somos, sem mentiras, sem redenção... não há ninguém para culpar quando a decisão é toda nossa, com seus desdobramentos bons e ruins.
Pode ser duro demais ver a vida dessa forma, e até um erro; mas é só assim, errando de verdade que se aprende de verdade. 


Tocar pode e deve ser diversão, mas isso não implica dizer que sua importância é diminuída por isso. O trabalho incessante de intérpretes, sejam instrumentistas ou cantores, compositores, pesquisadores e estudiosos dos mais variados aspectos da produção musical é uma contribuição gigantesca ao nosso desenvolvimento, e é muito pouco reduzi-la a "música dos anjos". É ela que nos afasta da barbárie, embora não a negue; é bem verdade que não nos torna santos através da negação, mas nos aproxima do que realmente somos através do enfrentamento...não é à toa que ela deve ser posta de lado, com recursos escassos e campanhas veladas que a ridicularizem enquanto profissão (a tal ponto que muitos músicos acreditem nelas).


O paradoxo aqui é que, historicamente, as sociedades que mais desdenharam do valor legítimo da expressão artística, especialmente a musical, foram as que mais precisaram dela. 

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