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sábado, 2 de abril de 2011

Dos regentes sem batuta

Talvez por uma idéia fixa e transmitida tacitamente em meios musicais, não é dificil encontrar regentes que não só não abrem mão da batuta na execução musical, como postam com ela em fotos diante da orquestra ou (pior ainda) sozinhos; uma necessidade de auto-afirmação que me soa, no mínimo, estranha. Sempre acho o papel do regente super valorizado na cultura de orquestra moderna. O culto a essa pessoa que não produz nenhum som, mas que com frequencia colhe sozinho em frente às orquestras os méritos por seus feitos me parece antes de tudo uma injustiça. E explico porque.

Uma orquestra não é um grupo de pessoas leigas sobre o material que lidam diariamente; ainda que em diferentes graus, todo músico dialoga com a tradição musical de seu próprio instrumento e, em condições ideais, conhece-o melhor que ninguém. Limites, timbres, possibilidades interpretativas e as soluções performáticas mais adequadas ao repertório de cada período da história da música. A priori, nenhum maestro tem condições de ensinar como cada um deve tocar; não é sua função, e mesmo que fosse, duvido que estaria apto a fazê-lo, porque é simplesmente impossível a uma única pessoa desenvolver o nível de proficiência técnica e particulariades em todos os intrumentos, o que cada instrumentista em seu mundo particular demora anos para atingir.

É curioso notar que a função do maestro progride de uma marcação de sincronia entre os músicos até assumir um pretensa responsabilidade pela realização musical em sua totalidade, como o verdadeiro e legítimo cérebro pensante da música de concerto. Em muitos casos, ele não vê problemas sequer em assumir inclusive a função pensante das partes constituintes da orquestra, os músicos, que algumas vezes alegremente a cedem ao seu maestro.

Norman Lebrecht em seu livro "O Mito do Maestro" ao mesmo tempo demonstra como construi-se e demonstra a falácia dessa imagem "superfaturada" do regente como a grande estrela de um concerto, auxiliado por pessoas quase sem importancia e eternamente devedoras de tão nobre presença entre eles, a propósito os músicos, e que compõe o pano de fundo visual de uma louca sucessão de gestos e caretas pelo qual recebe os aplausos mais efusivos. E a sedução dessa imagem romantizada é tão forte que não só acumula admiração e suspiros no público leigo, mas sobretudo abduz o próprio senso critico de quem realmente realiza fisicamente as emanações sonoras; faz de músicos experientes meros serviçais.

O maestro é mais um no grupo. Ponto. Sozinho, o maestro não é ninguém; por mais que ele se esforce, sua batuta no ar não produz mais que um leve suspiro. Sem ninguém à sua frente, a orquestra, por outro lado, pode inclusive funcionar melhor. Os músicos ali sentados delegam ao regente uma autorização temporária para permitir que ele conduza os trabalhos como centro unificador das ideias. Pelo bem da realização geral, os músicos abrem mão de convicções pessoais de interpretação para um entendimento comum, e o maestro representa essa coalizão. 

É fácil, por outro lado, estravasar essa fronteria e perceber que os músicos sentem-se excessivamente devedores ao regentes, da mesma forma que as pessoas enganam-se a ufanar políticos como donos de um poder absoluto, quando na verdade esse poder emana do desejo social e coletivo pela coalizão. Esse poder, sem demagogias, pertence tanto ao povo quanto aos músicos.

Quem teve paciência de me acompanhar até aqui deve estar perguntando-se se não me acho parcial demais; se o fato de grandes regentes como Toscanini, Mahler, Bernstein e Karajan não realocaram a tradição orquetral num novo patamar performático (não mais alto ou baixo, mas efetivamente diferente); eu posso responder que sim, mas que essa parcialidade não é gratuita. Penso que muito se fala a respeito dos maestros como divas e esquecem-se dos que efetivamente atuam na realização sonora. Acho que todo maestro deveria sentar nas fileiras de orquestra, e repensar sua função em relação a isso, sempre. O "poder" por trás da batuta não é efetivamente seu, mas delegado.   

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A propósito, reger sem batuta por si não diz absolutamente nada a priori, mas sempre me chama a atenção ver maestros como Boulez ou Harnoncourt, ambos especialistas em sua área, em suas performances.




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