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sábado, 22 de junho de 2013

Revoltas e revoltas...


É muita ingenuidade achar que estamos vivendo uma nova era ou, como diriam frases de efeito tão em voga hoje, que o "gigante acordou". Primeiro que, como vários analistas tem pontuado corretamente, nem todos estavam dormindo, e quem fala do "gigante" diz respeito de fato a uma parcela da população. Há muita gente que desde sempre vem falando o que quem chegou agora da "balada" não queria ouvir; defendendo o direito de minorias como os negros, gays e índios; apontando erros grosseiros e manipulações descabidas na cobertura da imprensa e na forma que induzem a opinião pública. Essas pessoas acompanham os debates políticos e pontuam erros e acertos. Muitos já fizeram chamados para mobilizações diversas por causas tão nobres quanto os 0,20 centavos e ouviram de volta que era perda de tempo.

Depois, dizer fora aos partidos não só é crítica rasa, como perigosa. Esquerda e direita não são facções que se diferenciam por cores, mas por formas diferentes de ver a organização da sociedade. E muitos dos que acessam o Facebook podem se surpreender com isso, mas não são ideias novas. Tem no mínimo dois ou três séculos de participação ativa. É até um pouco presunçoso dizer que inaugurou-se uma nova era, mas é compreensível. Ainda vivemos o êxtase dos que nunca souberam o que é lutar por algo.

Meu problema é com esse movimento sem cara e sem ideias. É ótimo ver as pessoas nas ruas, mas é deprimente aproximar uma lupa nos indivíduos que compõe a multidão e ouvir suas razões. Há grupos de caráter nitidamente fascista tentando usurpar o discurso que deixa vago a que lugar se dirigem. Gente que vai para uma manifestação com soco inglês e correntes, que pixa e destrói um prédio porque tentar entender a forma como as coisas ocorrem dentro dele e melhorá-la dá trabalho. E, não surpreendentemente, ninguém parece preocupado com o fato da Veja e a Globo se elevarem à categoria de púlpito popular num momento desses. A negação que podem ainda estar sendo explorados é sintomática.

Essas pessoas precisam ser resgatadas para o debate. É a consciência política progressiva que traz melhoras sistemáticas. Precisam entender que o ato de ficar imóvel exercendo uma crítica quando governos e mídias exigem sua retirada imediata é muito mais poderoso do que quebrar um prédio que não oferece resistência. As grandes imagens que marcam protestos pelo mundo são as de atos de coragem como permanecer parado, ou em pé, como na Turquia de hoje. Não é preciso muito esforço pra perceber que há lutas muito mais efetivas para garantir a correta aplicação dos recursos do que destruir o lugar onde isso ocorre. É preciso que se diga: outras pessoas em outras épocas já fizeram protestos semelhantes e o fato de ainda estarmos nas ruas demonstra que ainda não aprendemos direito a defender o que queremos; que se agimos sem pensar, nos tornamos tão cegos como os reais mandatários do poder (não necessariamente os políticos) querem que sejamos.

E que a voz da razão quase nunca está nos gritos, mas no argumento silencioso e destruidor para o qual não há defesa.

terça-feira, 28 de maio de 2013

Entre vaias e aplausos...

Há um pouco de exagero nas reações apaixonadas à vaia coletiva que Mehmari levou numa escola no interior de São Paulo. Foi injusta, sem dúvida e seu desabafo é um relato cru de quão ruim deve ter sido sua experiência. Mas por outro lado, acho pouco provável que as crianças ali sabiam de quem se tratava o pianista e a música que iria tocar.

A ideia de meninos pobres vaiando Mehmari ou Ernesto Nazaré pode parecer um sacrilégio para músicos extremamente versados na arte da interpretação musical, mas dificilmente escandaliza os mais fluentes em interpretação social. Difundir o acesso à cultura e à expressão pessoal através da educação musical é uma atitude que todos nós mais ou menos ligados à essa causa aplaudimos. Mas diferente do que alguns podem pensar, não se trata necessariamente de empurrar Mozart e Beethoven goela abaixo da meninada. Por mais contraditório que pareça para alguns, dar critérios de escolha e meios de expressão musical a um público amplo e irrestrito pode significar exatamente a diminuição da ênfase nesse repertório e o surgimento de outros.

Sempre parto do princípio que não existe nenhum pressuposto de autoridade naquilo que nós, músicos, fazemos. Todos temos nossas preferências, e no fundo no fundo, a melhor descrição da realidade nesse aspecto é que existe a música com todos os seus possíveis desdobramentos... e existe a forma como as diferentes pessoas se relacionam com todas elas. Ou algumas delas.

Se gostar da música dita "erudita" fosse um sinal de um discernimento superior, as salas de concertos não estariam tão cheias de pessoas mais preocupadas em terem suas presenças notadas do que em buscar ouvir o que aqueles músicos no palco bravamente tentam mostrar. E se gostar de, digamos, funk carioca fosse um sinal de estupidez desmedida, teríamos um país onde seria impossível de coexistir qualquer foma de organização, algo muito diferente do que temos hoje.

O fato do buraco ser mais embaixo exige mais daquele que se propõe a entender o mundo como ele é. É preciso saltar os lugares comuns e as expressões rasas e apressadas sobre julgamentos de classes sociais com base em preconceitos. A identificação de alguém com aquilo que exprime o que ela sente é algo muito pessoal e precisa ser melhor entendido por aqueles que atuam no fazer musical. Negligenciar isso seria continuar se escandalizando porque ninguém notou a OSESP no Proms inglês; porque o prefeito do Rio acenou uma fusão absurda entre das duas orquestras cariocas para uma cidade que devia ter oito e a única voz que se levantou de fato foi a dos músicos; ou porque intérpretes refinados como Mehmari podem ser hostilizados por aqueles pretensamente deveriam agradecer por tê-lo ali presente.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Minha doce Santa Maria, e o gosto amargo da tragédia

Este é um post de pesar profundo. Passe anos da minha vida criticando e batendo sobre coisas que considero equivocadas; descaso, corrupção, barbárie, a prepotência dos que se consideram acima de qualquer coisa, a impotência dos que são obrigados a viver sob a sua égide. Pois eis que, macabramente, muitas dessas características e outras mais se agruparam em torno desse assassinato em massa promovido numa boate em Santa Maria. Palavras não dão conta de explicar o que se sente e ainda assim, palavras precisam ser ditas.

Frente à uma tragédia cerceada de erros primários, estúpidos, fáceis de se evitar, a dúvida principal nem chega a ser o que leva um empresário que ganha rios de dinheiro a ser tão ganacioso a ponto de não investir no mínimo de segurança às pessoas que frequentam o ambiente; nem porque diabos atirar fogos em locais fechados parece uma alternativa "saudável" de diversão para essas bandas de agora. A principal dúvida é onde nós estamos a ponto de permitir isso nos dias de hoje. Nós, homens e mulheres, pais e filhos que nos acostumamos a ser tratados com desdém; que parecemos não ver problemas com o descaso, a ganância, a hipocrisia.

Estamos tão embebidos na nossa novela diária, no brasileirão de futebol, lendo recortes cuidadosamente escolhidos por quem controla os jornais que fomos completamente alijados da nossa capacidade crítica. A declaração é dura, mas como eu falei, palavras precisam ser ditas. E o modelo de sociedade que temos tem que ser revisto; se deixamos alguém cuidando do acampamento enquanto dormimos acreditando-nos seguros mas somos constantemente acordados aos sobresaltos sem entender o porque aquilo ocorre, há algo muito errado no ar.

E o porquê disso está aí, estampado em jornais do mundo inteiro; os mesmo jornais que silenciam de problemas reais no dia-a-dia com matérias que poderiam salvar vidas. Ou alguém duvida que se um jornalista se dispusesse a fazer matérias isentas sobre o funcionamento dessas boates seria proibido pelo próprio editor do jornal? Esse jornalista estaria contrariando os interesses que mandam e ditam o que faz parte do nosso cotidiano. E o que não.

As críticas dos especialistas em cada área pululam nesse momento. Bom, para uma infinidade de vidas destroçadas, elas de nada adiantam agora. Quase duzentos e quarenta mortos, o horror nas lembranças que acompanharão por anos a fio os que sobreviveram; mais a dor definitiva que agora habitam seus pais, amigos e parentes mais próximos, a comoção que isso causa nas pessoas que não perderam ninguém diretamente, mas sabem que o sino que bate por cada um de nós fazer morrer um pouco de todos nós.

Mas a rota do planeta não se altera. Materiais inflamáveis em contato com o fogo continuarão a queimar quase instantaneamente; lugares apertados continuarão a não dar vasão a uma grande quantidade de pessoas no mesmo momento. E aparentemente, essa visão de diversão incrustrada nas pessoas de que uma casa noturna precisa ser como um curral humano provavelmente não irá mudar muito. A questão que fica agora é uma grande interrogação pairando sobre todos aqueles corpos de jovens universitários. 

Algumas pessoas se apressam em responder; "estava na hora deles", "Deus chamou-os pra perto", "Deus conforte essas famílias". Bom, um observador imparcial e sem papas na língua perguntaria onde estava essa proteção toda que, se de fato vê a tudo e a todos, observou o pânico e o horror de mais de cem pessoas que no escuro absoluto confundiram a saída principal com o banheiro e morreram todos lá sufocados e amontoados, e nada fez para impedir. 

Tentamos o tempo todo contornar o mundo real, porque ele nos desagrada profundamente. A ideia que todos eles estão num lugar melhor nos daria conforto de fato. Mas o nosso conforto pode em nada corresponder ao que de fato ocorre no mundo real, assim como a fé na cura de uma doença grave enche os olhos de lágrimas de quem passou pela experiência, somente para ver o retorno da doença meses depois e vir a falecer dela. Além do mais, em nada ajuda se pensarmos que ele serve pra diminuir a indignação; a não ver as causas reais desse assassinato onde elas estão e buscar explicações que, de alguma forma nos digam que há um plano maior naquilo tudo, que a vida de tantas pessoas gentis, educadas e simples não podem ser riscadas assim abruptamente sem um motivo digno.

Acompanhei uma das declarações da coordenadora dos psicólogos e terapeutas envolvidos no atendimento aos familiares e profissionais envolvidos no resgate. Ela dizia que, quando a família chegava ao funeral e encontravam o caixão fechado, esses profissionais são orientados a abrir para que as pessoas vejam que de fato, aconteceu. Pode parecer duro, mas há uma explicação plausível e convincente pra isso. Segundo ela, a negação da morte costuma desenvolver traumas que acompanhama  vida de muitas pessoas que ficam. Ninguém quer perder um ente querido e a dor é angustiante, definitiva, sem alívio naquele momento. Mas, para o bem e para o mal, é assim que o mundo é.

Se construímos nossa civilidade  sobre os frágeis alicerces da negação de como o mundo real funciona e permitindo que um sistema injusto em que alguns poucos gerenciem o que é de todos às custas de cuidados básicos que são indispensáveis, inventar desculpas e buscar refugio na ilusão sobrenatural não ajuda aqueles que ficam aqui nesse mundo. Temos sim de chorar os nossos mortos. Temos de atravessar o vale de lágrimas a que estamos todos sujeitos num mundo que não entendemos bem. Mas temos também de começar a cobrar de quem de direito; de mostrar que a vida ceifada não pode ser em vão. Não deve.

E finalizo deixando o link para as fotos dos que pereceram na boate em Santa Maria. Na feição de cada um, um sorriso satisfeito de quem buscou seu melhor ângulo para ser visto pelos outros. Olhá-los agora torna o inacreditável palpável, humano, real. E faz a indignação chegar aos limites que já não podem ser contidos por discursos de consolo de nenhum tipo.