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terça-feira, 30 de agosto de 2011

A despedida...

Tantos anos na empresa o tinham feito esquecer-se do quanto dela esteve presente em sua vida. Em seu último dia, ele foi recebido no portão como de costume; passe privilegiado, a saudação habitual. Com a documentação assinada, ele caminhou lentamente pelos prédios e viu pessoas nos afazeres do dia a dia; afazeres que se algum dia foram seus, hoje fazem parte do seu passado e lhe são completamente alheios. A visão de lugares ali o fez lembrar de situações que viveu, com seus altos e baixos. Os momentos afloram indo e vindo na memória com aquele local como palco; tantas alegrias e as incontáveis vezes em que seu riso correu solto contrastam com algumas das grandes decepções que teve, os dias mais sombrios...

Mas ele sequer pensa nisso agora. Seus passos já vão longe e o vemos caminhando indo rever os colegas que com ele trabalharam e lhe organizaram uma despedida singela mas sincera. Ali despediu-se de algumas das melhores pessoas que já teve o prazer de conhecer em toda vida, muitos dos quais desconhecem seu verdadeiro potencial, como elefantes que cresceram amarrados a um cepo sem poder se soltar, e quando adultos, mesmo atados a cadeiras, desistem de tentar a liberdade.

O dia já ia adiantado, o sol caminhava para o poente. Apesar de todos os passos terem sido feitos, parecia faltar algo. E antes que seu pensamento realizasse, seus pés já estavam a caminho do lugar. Encontrou o garoto no local de sempre, usando óculos e aparelho, sempre lendo mas, por sua ingenuidade, sempre alvo de gozações dos demais. Apesar disso o outro nunca se zangava e respondia com um sorriso estampado. Todas as vezes que trabalharam juntos, o garoto sempre lhe tinha sido solicito, reservado e responsável. Mas, além disso, seu interesse por leitura fez com que ambos compartilhassem quase sempre boas conversas que o destacaram dos demais. Agora já diante dele, entendeu a mão e disse "estou indo embora, passei para me despedir". O sorriso e a interjeição de surpresa foram a resposta, com um "puxa, fico feliz". "É", voltou ele, "passei para dizer também que continue assim, que estude, que busque o seu melhor... se houvessem mais pessoas aqui como você, minha vida teria sido muito melhor aqui dentro". A surpresa tornou-se emcabulação, e o garoto sempre alvo de risos teve seus olhos rasos d'água por um instante pelo reconhecimento assim direto. Despediram-se, ele saiu dali e deu uma última olhada em tudo, nas coisas e pessoas banhadas pelo sol amarelado do poente e disse consigo "é isso, está feito!".

Entrou no carro, girou a chave e conduziu lentamente em direção ao portão. Não havia saudades, nem tristezas, nem receios e seu rosto estampava um leve sorriso. Passou pelo portão pela última vez como um empregado respeitável do local. Se alguma vez tiver que voltar ali, será como um anônimo sem quaisquer privilégios, nem ser chamado de senhor, e cuja identificação não será diferente de qualquer passante que queira entrar. Mas nada disso desfaz o sorriso insistente nos lábios.

De carona no carro, levava apenas um leve receio, que no entanto, desceu na primeira curva logo após o bambuzal e dali observou o carro acelerar mais e mais, como o sorriso que se abria no rosto do condutor, e sumindo no horizonte juntamente com a última réstia de sol. Estava feito, e nada podia pará-lo.



sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Os "deixa disso"


Basta um rasante por nossa história para constatar que a contemporaneidade de cada época é marcada entre outras coisas, pelo embate entre o novo e o velho, o inovador e o mais do mesmo. No outro post, falei sobre minorias e seus direitos ou a ausência deles, melhor dizendo (as mulheres não eram necessariamente minorias em todos os casos, mas vivam como uma delas). Ocorreu-me que em todo esse tempo que falei, não faltaram os canhotos que se resignaram a inverter a duras penas sua programação genética pedindo aos outros canhotos que se acalmassem, afinal "qual era o problema?" Também não devem ter faltado pessoas em regime de escravidão dizendo que pelo menos tinham o que comer, ou mulheres como respeitosas donas de casa criticando a vizinha que usa cabelo curto, fuma ou vive só.

Essas pessoas não mudam a sociedade; são do mesmo gênero dos "deixa disso" que tanto presenciei em minha vida na escola e tanto azia me deram e dão ainda hoje. Aqueles que não podiam ver uma briga que queriam separar dizendo "gente, o que é isso?", mas eram incapazes de dirigir uma palavra punitiva ao provocador inicial. A essas pessoas, pouco importa que haja pessoas descontentes e sofredoras nesse mundo, ou se importa, melhor não pensar a respeito; o que as leva às lágrimas é a contenda, a briga, ver o estouro da manada. Pessoas de raciocínio raso, que adoram auto-ajuda adocicada, religiões conformadoras, leem o "Segredo", repetem "se deus quiser" o tempo todo como remédio para as frustrações. Esse pensamento parte sempre do mesmo princípio: evite o conflito. Então, não são elas o motor de mudança social. Elas são o status quo.

Frequentemente, as pessoas preocupadas em manter o status de uma época incorrem em erros grosseiros ao enquadrar minorias como um ultraje. Agora, junte dois dos aspectos que mencionei antes (mulher e negra, no caso) e você terá o coquetel explosivo que mais mexe com a imaginação e a criatividade do preconceituoso, ou se preferir (eu prefiro) aquele que passará para a história como um testemunho da mais completa imbecilidade de sua época. Observe a imagem a seguir.

A menina negra ao centro é Elizabeth Eckford e essa foto foi tirada no seu primeiro dia de aula numa escola de ensino médio no estado de Arkansas nos Estados Unidos em setembro de 1957. Ela foi um dos primeiros nove estudantes negros aprovados numa escola "branca". Ela se desencontrou dos outros e acabou tendo de caminhar sozinha até a escola, e foi cercada por outras alunas que julgavam aquilo um absurdo. Nascida em 1941, Elizabeth não contava com mais de meros 16 anos; uma menina, pura e simplesmente, cujo ato ergueu atrás de si uma muralha de mal amadas raivosas (não se engane com aquela da direita; ela foi quem resgatou-a da multidão).

Agora olhe novamente as expressões na foto. Pode olhar, eu espero.


Poucas pessoas hoje em dia conseguem olhar essa foto e não ver a desproporção das forças medidas e simbolizadas nela; eu diria que seríamos unânimes em considera-las um absurdo. Mas claramente esse absurdo não ocorria às pessoas que achacavam feito hienas a menina. 

Hoje, cada vez que vejo  manifestações contrárias ao direito de minorias, imagens como essa me vem à cabeça. E não tenho dúvida que o pensamento mesquinho dos que hoje condenam sem quaisquer critérios vão fazê-los passar à história tal como foram as pessoas em volta de Elizabeth: covardes.

O que não falei antes sobre a foto do fotógrafo Will Counts é que sua repercussão foi absurda. Pois é, quem diria que um momento onde as pessoas achavam-se no "direito de manifestação" para não serem 'sufocados' pela "mordaça de raça" que os terríveis negros estavam impondo à sociedade ia ser captada e transformada num ícone mundial contra a intolerância?

E acabou que foi. Sabe aquela baixinha bocuda que vai atrás de Elizabeth na foto? Seu nome é Hazel Bryant.

(E sim, eu espero você olhar outra vez).

Olha ela aí, quarenta anos depois tendo de pedir desculpas publicamente à menina que só queria estudar.


Ela era uma adolescente também na época. Mas isso não justifica a atitude covarde que teve, com reflexos presumíveis em toda a sua vida ("você é neto daquela racista que xingou a menina do Arkansas?"). Tá aí um bom recado aos homofóbicos de hoje: continuem assim e quem sabe não teremos um de vocês expostos e famosos dessa forma daqui a alguns anos também?!



"Evangelicofobia", "orgulho hétero" e outras merdas

Os movimentos da humanidade na sua história são geralmente descontinuados e aleatórios. É possível ver isso nas contendas locais que ocorrem e quase não repercutem em nenhum outro lugar. Entretanto, de tempos em tempos, algumas dessas contendas ganham contornos maiores e mais amplos, seja porque dizem respeito a direitos fundamentais dos seres humanos como um todo, seja porque a conjuntura social e política de uma época possibilita essa manifestação. O fato é que vozes discordantes sempre existiram e chocaram-se no ar; seja pela suas insitencias, seja por uma feliz coincidência, os maiores avanços da nossa civilidade vieram quando essas vozes descontinuadas se uniram em torno de causas comuns.

Como exemplo, interlocutores da Idade Média eram pródigos em afirmar que ser canhoto era uma aberração que contrariava as leis de deus. Era escrever com a "mão errada" e não foram poucas as pessoas que nasceram, viveram e morreram nesse nosso mundo a se adaptar a uma condição tao absurda quanto a uma pessoa com os dois pés aprender a pular num só. E isso era impetrado pelas famílias, pais e mães, aos seus filhos, pelas escolas aos seus alunos, pelas cidades aos seus indivíduos. Demoramos muito tempo pra nos livrar desse engodo, e em muitos lugares, mesmo depois de provado o absurdo que representava esse pensamento, ainda perdurou por muito tempo.
Na próxima, foram os escravos. O ato vil até então praticado por todas as civilizações antigas estourou em movimentos abolicionistas em todo o mundo ao longo do século XVIII e XIX (sendo o Brasil um dos últimos a adotá-lo, a propósito). De novo, isso era reflexo de pessoas acreditando firmemente que tinham o sagrado direito de possuir outra como propriedade, seja porque eram inferiores sob seus próprios e equivocados critérios, seja porque a leitura da biblia na época autorizava (uma leitura literal dela ainda 'autoriza'). Pessoas boas e decentes sob quaisquer outro critério não viam nada demais em cumprir o que chamavam de vontade de deus nesse quesito, inclusive não poupando a correção merecida no tronco daqueles ingratos que recusavam a boa vida de pão e água nas suas masmorras a céu aberto. E de novo, mesmo depois da idéia inicial ter se mostrado vergonhosa à nossa espécie, foi preciso muito tempo para que a maioria se convencesse do absurdo. Desnecessário dizer que alguns ainda não se convenceram.

 O céu das mulheres, por outro lado, demorou um pouco mais a se abrir. Foi preciso esperar até o século XX, quando a revolução industrial e científica já tinham dado passos consideráveis para que a mulher tivesse direito a voto, pudesse construir sua independencia financeira e um destino diferente da dona de casa como sombra do marido, com infinitas obrigações mas poucos direitos. Não foram poucos os homens a chiar com as primeiras 'revoltosas', acusando-as de destruidora de lares, vagabundas e tudo que é coisa. Também nesse caso, a biblia dizia e legislava sobre o homem ser a "cabeça" do lar, então qual era o problemas delas afinal? Porque desestabilizar a sociedade que julgavam perfeita?

"Mas isso era o pensamento da época", me dizem alguns. "Hoje em dia não fazemos mais isso". "Além do mais", prosseguem os mais entusiastas, "essa leitura era equivocada". Bom, se você se prende pelos atos em si, claro, não discriminamos mais os canhotos, nem admitimos a escravidão como forma de vida aceitável. Além disso, apesar do humor covarde que tenta desmerecer a mulher através da caricatura fácil e estúpida, as mulheres ganharam espaço considerável em nossa sociedade moderna. Mas, e isso quero sublinhar efusivamente, se tivemos esses avanços, não foi porque as crenças da época levaram a uma melhora no comportamento, e sim, a crítica aos que sem evidências aceitáveis, imputavam aos outros suas próprias crenças. Não foi a religião, mas a sociedade laica que trouxe consigo a efetiva idéia (para alguns, absolutamente surpreendente) que basta você se colocar sob a perspectiva de uma dessas minorias pra saber que tem algo errado. 

Por outro lado, basta você focar no modo operante do raciocínio nessas épocas e vai perceber que a história é cíclica. 

Nos tempos atuais, vivemos situação semelhante com a aceitação dificil mas necessária dos homossexuais na sociedade. As igrejas continuam fazendo o que sempre fizeram, ditando "a vontade de deus", propagando a "calamidade e abominação" do que não concordam. E os religiosos que perderam o espaço que tinham quando a igreja dominava o estado, resolveram se organizar em bancadas "evangélicas" (seja lá o que diabos isso é) e através de uma estratégia estúpida, mas organizada, difundir na população carente de tudo que o deus que acreditam está horrorizado com a atitude das mulheres e homens porque estão seguindo o instinto que, pretensamente, ele os dotou.

Se bato continuamente nessa tecla é porque quero pontuar nesse meu espaço minha indignação com a covardia dessa atitude. Com gente de má fé, com propósitos espúrios, que transferem aos seus fiéis seus medos, receios, maldade e insegurança. Mas essa insegurança e essa má fé também são extensíveis às pessoas em geral que compactuam com isso. Àquelas que negam seus filhos, vizinhos e amigos pela opção sexual sem sequer se dar ao trabalho de pensar no absurdo que isso é; àqueles que choram copiosamente porque o mundo não é como eles queriam e isso quer dizer que é pior. E, àqueles que, acostumados a discriminar sem ser importunado, criam agora o termo "evangelicofobia" para confundir o sentido dos rasos de raciocinio.



Nada mais estúpido, nada mais descabido. E somente esse pensamento doentio pode aceitar um dia de "orgulho hétero", como se houvesse um real "perigo iminente" à "família e aos valores". Isso é colocar como iguais o capitão do mato que bateu a vida toda a largas braçadas com o escravo que, cansado disso, num dia apanhou o chicote e arrebentou a fuça do outro. De novo, e de novo, as pessoas com esse preconceito arraigado pela ignorância buscam desesperadas um bastião de trazer a razão para o seu lado da forma mais infantil, que é acusando o outro daquilo que mais cometeu: a destruição do nosso senso crítico e da capacidade das famílias de discutirem sensatamente suas diferenças sem dogmas ou condenações.

Liberdade aos diferentes, sejam canhotos, negros, mulheres e homossexuais, sempre incomoda aos incapazes de brilhar por conta própria. Será isso inveja da purpurina nas suas manifestações, do sorriso leve de quem vive a vida como gosta e não como os outros ditam?


quinta-feira, 18 de agosto de 2011

"As faces da 'Opressão'" ou "Liberdade e responsabilidade... mas não pra mim."


Hugo Chavez e a imprensa

Meio amalucado, com pouco gosto para suas aparições, simplista e um pouco prepotente, Chavez seria minha melhor opção se o cargo fosse um comandante militar ou coisa que o valha; nunca para presidência.
Mas a justiça tem de lhe ser feita: sua imagem aqui é pintada como um lunático ditador e isso parece carecer de fatos. Ele não renovou a concessão pública ao funcionamento de uma tv venezuelana e sua fama de censura é alta aqui. O que não se noticia é que essa mesma tv armou uma tentativa de golpe contra ele. E depois, longe de fechar a empresa com aparato militar como fazem crer alguns noticiários, ele deixou de renovar a concessão, o que é, convenhamos, bem diferente.

Abaixo dois vídeos exemplares de como pensa o presidente da Venezuela, por suas próprias palavras.

Aqui ele responde a um entrevistador do programa Roda Viva.


E aqui a um repórter da Fox News norte americana (que Barak Obama chama de um partido disfarçado de tv). Não achei as legendas em português e sequer em espanhol, mas essas em italiano devem quebrar nosso galho latino.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Manuel Bandeira em "O último poema."



Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

"Ninguém me cutuca" ou "como usar o Facebook"

Saramago em "A viagem do elefante"

"(...) uma vaca se perdeu nos campos com a sua cria de leite, e se viu rodeada de lobos durante doze dias e doze noites, e foi obrigada a defender-se e a defender o filho, uma longuíssima batalha, a agonia de viver no limiar da morte, um círculo de dentes, de goelas abertas, as arremetidas bruscas, as cornadas que não podiam falhar, de ter de lutar por si mesma e por um animalzinho que ainda não se podia valer, e também aqueles momentos em que o vitelo procurava as tetas da mãe, e sugava lentamente, enquanto os lobos se aproximavam, de espinhaço raso e orelhas aguçadas. Subhro respirou fundo e prosseguiu, ao fim dos doze dias a vaca foi encontrada e salva, mais o vitelo, e foram levados em triunfo para a aldeia, porém o conto não vai acabar aqui, continuou por mais dois dias, ao fim dos quais, porque se tinha tornado brava, porque aprendera a defender-se, porque ninguém podia já dominá-la ou sequer aproximar-se dela, a vaca foi morta, mataram-na, não os lobos que em doze dias vencera, mas os mesmos homens que a haviam salvo, talvez o próprio dono, incapaz de compreender que, tendo aprendido a lutar, aquele antes conformado e pacífico animal não poderia parar nunca mais. (...)"

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

O grande saltador.

Sai pra caminhar dia desses e sentei-me numas pedras à beira mar. O vento era ameno e de calmo, quase não havia ondas no mar. De repente, daquela imensidão escura salta um pequeno peixe fazendo uma curta peripécia no ar para novamente mergulhar no silêncio. E de uma coisa assim simples me ocorreu uma série de pensamentos e paralelos; de onde ele veio e pra onde foi? Do mar seria a resposta óbvia. 

Claro, eu não pensava mais naquele peixe em específico, mas no paralelo com as nossas vidas. Em como ela pode caber dentro de um curto espaço de tempo, em que emergimos do nada, criamos nossa própria peripécia e sumimos no silêncio novamente. E no arco que compomos nessa trajetória do momento em que nos tornamos visíveis no nascimento até nosso fim, ocorre-me que é dele que tiramos todas as nossas conclusões sobre o que veio antes e o que virá depois. 

Apesar de existir pessoas que afirmam conhecer o que chamam vidas passadas, é fato que nenhuma delas pode provar o que quer que aleguem, e o argumento da experiência pessoal é inútil nesse caso, como demonstra uma visita a qualquer hospício mais próximo. Uma vez mais, não custa lembrar que acreditar no que achamos que somos nada tem a ver com o que somos de fato. 

A maioria das religiões concentram-se no depois, mas com histórias tão desprovidas de evidências quanto a do papai noel.  E como, em ambientes desprovidos das luzes e efeitos especiais fica impossível demonstrar que alguém já voltou efetivamente para dizer o que quer que seja, ficamos assim com esse nosso estrito lampejo de consciência que temos e chamamos vida. Tomamos consciência dela em plena manobra e nossa experiência comparativa demonstra através de quem nos precedeu que nosso tempo aqui não é nada mais que isso; um lampejo.

Sem saber se existiu um antes, e pior ainda, se existirá um depois, não foram poucas as pessoas que usaram a nossa curiosidade a esse respeito como base para o controle e o domínio de uma massa de semelhantes pela ferramenta mais poderosa nesse caso: o medo, puro e simples. Assim, poucas pessoas controlam através de preceitos discutíveis, o comportamento de uma gigantesca quantidade de pessoas, que muitas vezes alegremente abrem mão da própria paz nesse nosso curto "vôo no ar" em favor de uma promessa feita com base em nada.

Mas, até que se prove o contrário (o que eu não apostaria), esse salto é tudo o que temos. É nele que nos conhecemos indivíduo; tomamos conhecimento dos outros, somos crianças, meninas e meninos, adultos e anciões. É nele que nossa vida se completa em contato com outras vidas e estabelecemos nossas relações; amamos, odiamos, e respiramos para também sermos amados e odiados; choramos e rimos, em proporções diferentes às vezes. Nesse espaço de tempo, somos livres, pois voamos sem amarras, embora tenham nos feito acreditar no contrário por tempo demais. Somos seres independentes, paradoxais porque em constante construção intelectual, mas ao mesmo tempo, acabados e dotados de todas as ferramentas para atingi-la desde nosso nascimento; como Saramago diz, nosso cérebro é de tal ordem que leva tudo dentro. 

Algumas pessoas realizam saltos prodigiosos e inscrevem-se decisivamente na história dos que lhe são próximos e o observam. Esses permanecem vivos na memória dos que o acompanharam, e sua lembrança perdura por muito tempo, mesmo quando sua presença não é mais que um traço no passado distante. Alguns aproveitam a luz do sol que os banha por um curto período e brilham ainda mais, tocando as pessoas à sua volta com uma luz ainda mais terna e precisa. E tal como as estrelas, sua luz continua brilhando mesmo quando a sua fonte parece ter se apagado. Gestos como esse são mais que suficientes para fazer toda essa aventura incerta e desconhecida ter valido à pena.

Então faça dessa sua trajetória o que lhe apetecer. Realize que você é livre, e será. E acima de tudo, aproveite o seu salto.

Grande abraço.


Em memória do Milton, um dos maiores saltadores que conheci.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Contrapontos

Acordei inspirado. Clicando aqui e ali, dei de cara com isso:

"A maior aventura de um ser humano é viajar,
E a maior viagem que alguém pode empreender
É para dentro de si mesmo.
E o modo mais emocionante de realizá-la é ler um livro,
Pois um livro revela que a vida é o maior de todos os livros,
Mas é pouco útil para quem não souber ler nas entrelinhas
E descobrir o que as palavras não disseram..."

Isso é, como não poderia deixar de ser, Augusto Cury. Mas, como eu disse, estava inspirado e normalmente assim, meu humor está em alta. Resolvi dar um voto de confiança e fui clicando em textos aleatórios até achar um que me dissesse algo.
Encontrei esse:

"O homem não consegue ficar de mãos abanando, contemplando o seu destino neste mundo, sem ficar desvairado. Por isto inventa formas de tirar sua mente deste horror. Trabalha, diverte-se. Acumula aquele grotesco nada, chamado propriedade. Persegue aquela piscadela esquiva da fama. Constitui uma família e dissemina a sua maldição sobre ela. E, todo o tempo, a coisa que o move é o desejo de se perder de si mesmo, de se esquecer de si mesmo e de escapar à tragicomédia que é ele próprio. Fundamentalmente, a vida não vale a pena ser vivida. Assim, ele cria artificialidades para fazê-la parecer que vale. E também por isto erige uma espalhafatosa estrutura para esconder o fato de que ela não vale."

Isso é H.L. Mencken, me lembrando do quanto é importante termos a palavra negro após a palavra humor. E lembro de ter pensado "eu tentei, Augusto... eu tentei". A diferença principal entre esses escritos é que no primeiro caso, temos o que eu chamo às vezes de literatura água com açucar. Você termina de ler e está exatamente como estava quando começou, só que mais entediado. A tautologia, o raciocínio circular, a rima fácil, os jargões banais sobre a vida, etc. por outro lado, o segundo texto trás algo que incomoda, ou desassossega para citar Fernando Pessoa (de cuja frase título esse blog usa, aliás). A vida não vale a pena ser vivida? Como assim? Se é assim, porque o escritor se dá ao trabalho de estar escrevendo? Mais do que isso, porque estaríamos nós aqui então? Você vai com o senso comum quando diz que a vida é o maior de todos os livros, mas considerar que ele ainda assim pode estar em branco na sociedade em que vivemos exige uma mente robusta pra não ficar achando Mencken um pessimista paranóico e sem sentido.


E ocorreu-me agora que a diferença básica na linguagem de cada um está ironicamente contida no texto do outro; a "viagem" que Cury propõe como maior aventura representa bem esse desejo de perder-se de si mesmo e escapar da tragicomédia que somos, especialmente para os que pautam seu comportamento por palavras de ânimo como algumas pessoas tanto parecem precisar ("você é especial", "o universo conspira ao seu favor", etc.). Ler as estrelinhas de Mencken, por outro lado, não é fácil fazê-lo e dá trabalho, mas nada seria mais útil em nossa futilidade contemporânea.

Brainstorm...1.

Às vezes eu fico tentado a publicar nesse blog posts somente sobre música, que é a minha vida. Mas então, eu penso na vida em si. E penso que a compreensão da música como fenômeno ou mesmo atividade passa pela compreensão do que a vida é. Mais do que isso, a própria natureza da expressão artística engloba compreender o que somos e onde vivemos.

Um exemplo disso é o espectro visível das cores. Observe essa figura.


Nela estão contidas as cores que podemos enxergar a olho nu. Isso que dizer que esse é um pequeno extrato de um continuo maior, e que para além de um extremo e do outro da barra não conseguimos ver. Termos como ultravioleta e infravermelho (grifos meus, obviamente) refletem frequências além desses extremos, e que são, por isso mesmo consideradas invisíveis.


Agora, quer uma coisa pra ficar pensando? Durma com isso: nada tem cor por natureza. Tudo o que vemos, seja uma pintura (um Rembrandt ou o desenho do seu sobrinho de dois anos, tanto faz), uma laranja, um carro, a palma da sua mão; nada disso tem cor por si. Tudo isso absorve determinadas faixas de frequencia da luz que incide sobre ela e reflete uma; essa é a cor que vemos. Isso quer dizer que basta você virar o rosto e sua bela cozinha de granito, mármore e o diabo "perde" todas as características visuais que podem ter lhe feito ficar horas escolhendo no catálogo.

Mas é mais do que isso: quer dizer que todo nosso esforço para ser compreendido em termos de textura (como no caso da pintura e escultura) usa meios que contraria nossa intuição, porque é dificil imaginar que um quadro cujo pintor passou semanas escolhendo cuidadosamente as relações de cor, "perdem" imediatamente essas características assim que alguém tira a vista dele. Agora, o que isso quer dizer? O que expressar-se através de materiais e texturas que podem ser tão relativisadas na visão de cada um diz sobre o que somos?

Não tenho certeza sobre isso, mas parece-me que tudo o que vemos são tentativas de tentar entender o que compõe esse nosso mundo. Cores "frias", "quentes", "profundas", etc, nada mais são que meios fisicos limitados que servem como a porta de entrada da nossa imaginação para essa incrível busca do que somos.

sábado, 6 de agosto de 2011

Comerciais...


Ser filha da puta é...



"Procurando por algo pra apimentar sua vida?"


"Selecione um papel maior!"

Carlos Drummond...

...e sua eterna capacidade de expressar o que penso, mas dito de forma muito, mas muito melhor...


"Casa


Casa arrumada é assim:
Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa
entrada de luz.

Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico, um
cenário de novela.

Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os
móveis, afofando as almofadas…
Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo:
Aqui tem vida…

Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras
e os enfeites brincam de trocar de lugar.

Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições
fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha.
Sofá sem mancha?
Tapete sem fio puxado?
Mesa sem marca de copo?
Tá na cara que é casa sem festa.

E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.
Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde.

Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante,
passaporte e vela de aniversário, tudo junto…
Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda.

A que está sempre pronta pros amigos, filhos…
Netos, pros vizinhos…
E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca
ou namora a qualquer hora do dia.

Casa com vida é aquela que a gente arruma pra ficar com a cara da gente.
Arrume a sua casa todos os dias…

Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo pra viver nela…
E reconhecer nela o seu lugar."

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Barro...

Catei do Bule

Swingle Singers... o grupo na sua melhor forma.

1812 de Tchaikovisky 



Abertura da Flauta Mágica, Mozart


Saudades de Jobim...

... mas do Tom, não do Nelson, por favor!



Ler as entrelinhas pode ser uma tarefa dificil, mas é um exercício necessário, especialmente para quem não se acha com vocação para peão de manobra ideológica. E se você nunca se perguntou como um ministro do primeiro escalão do governo se presta ao papel de fuxico infantil sobre a professora que o deixou de castigo, então pode estar na hora de exercitar mais.

Pense comigo: se você está descontente com a escola onde trabalha, o que você faz? Vai à rádio da cidade e fala mal da administração do prefeito ou do cabelo que a secretária de educação usa (ainda que em off)? Claro que não. A não ser que essa fosse sua intenção, você seria fuzilado pela maré de diz-que-me-disse. Agora, imagine se você não é só um professor municipal, mas um advogado, ex-deputado federal, ex-ministro, ex-ministro da Corte Suprema e ministro da Defesa; o que você acha que aconteceria?

O cenário político se desenha de forma aparentemente casual na mídia, mas não tenha dúvidas: ele é cuidadosamente orquestrado. Ou surpreendeu alguém que o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT) era (e convenhamos, ainda deve ser) uma farra de licitações fraudulentas e sem outro fim que o desvio do dinheiro público? Ora, basta andar pelas ruas da sua cidade. Mas, de repente, a "bomba" estoura. E os autores da matéria e da repercussão dela são provavelmente os mesmos que vivem o dia a dia no planalto em Brasília, engafinhados entre jantares e conversas informais. Então eu sei disso, você sabe, mas eles não?

Com a faxina feita no ministério dos Transportes, deixou de ser notícia; perdeu força. Basta correr os olhos nas notícias atuais para saber qual a real intenção por trás dessa manobra aparentemente tola: munição nova na manga de uma oposição política que beira o limiar da tolice. Álvaro Dias, líder do PSDB no Senado, diz que a escolha do substituto de Jobim, o ex chanceler Celso Amorim, foi escalar zagueiro pra jogar de centro avante. César Guerra, presidente nacional do mesmo partido, disse que a escolha foi indequada. O portal da Veja publica quase diariamente uma nova matéria enviesada sobre isso. E o quase inexistente deputado baiano ACM Neto renasceu das cinzas por breves instantes para tecer um comentário risível sobre a demissão do ministro ter sido motivada por ele ter tido uma posição ideológica.

A pergunta nem precisa ser feita, mas lá vai: se a experiência internacional que Celso Amorim adquiriu vivenciando situações de guerra in loco não se compara em nada que qualquer outra pessoa teria no Brasil, e se mesmo especialistas afirmam que ele não terá problemas no comando da pasta, porque deveríamos nos interessar pela opinião do senador Álvaro Dias, César Guerra e seus cosanguíneos? Pra mim, quando leio isso, sinto que minha rotina altera-se tanto quanto ler sobre a 'polêmica' entre Fred e os membros da torcida organizada do Fluminense, ou sobre a "revelação" das primeiras exigências de Britney Spears em sua (muito aguardada por mim [ironic mode on] ) vinda ao Brasil. Pertencem à mesma categoria.

Os militares, por outro lado, e para usar um dito gaúcho conhecido, "sentaram no patê". Com a polêmica sobre a revelação pública dos arquivos da ditadura, ter um ministro que se identifica com causas humanitárias pode até não dar em nada, mas me diverte imaginar os generais de pijama em casa choramingando em telefonemas noturnos se seu rosto vai aparecer no jornal do dia seguinte. Numa opinião pública tão frágil de julgamento, é irônico vê-los tentar em vão vender o absurdo gritante de que é justo anistiar não só o perseguido, mas também o carrasco. Mas isso é outra história...

Pra mim, Jobim já vai tarde. Mas o Nelson, não o Tom, por favor!!