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sábado, 10 de dezembro de 2011

O menino de madeira...

O velho vivia triste e amargurado. Um dia, não suportando a solidão da cidade, vendeu a pequena marcenaria e foi para o campo. Lá, construiu a própria casa e passava os dias a vagar pelos arredores. No topo de uma planície, não muito longe de casa, havia uma árvore pequena, frondosa e bela, que parecia reinar sobre as outras. O velho sentava em suas raízes e encostava a cabeça no tronco tentando ouvir o que dizia. Ele não sabia bem porque, mas acreditava que havia uma vida dentro dela. Uma voz suspirando baixinho, pedindo para ser liberta.

Numa manhã gelada e nebulosa, o velho deu a volta por trás de casa; trazia um machado. Com destino certo, atravessou a grama molhada e com o machado golpeou o tronco repetidas vezes. Os estilhaços voavam fazendo-o acelerar seu trabalho entre as pausas para descanso cada vez mais frequentes. Ainda assim, numa hora ou outra um dos dois tinha de ceder. Quis o acaso que fosse a velha árvore. O som agudo e grave atravessou o ar, e quase no fim do dia o velho já arrastava o pedaço de madeira pelo campo até sua casa.

Por dias a fio ele trabalhou com empenho, lapidando, esculpindo, martelando. A forma rugosa e arredondada foi dando lugar a uma forma mais conhecida para o velho. Em vez de veios irregulares e disformes, a figura agora lembrava um homem; na verdade, um menino, pra ser exato. Quando ficou pronto, era possível ver que seu rosto esboçava um leve sorriso porque o velho assim o tinha esculpido, mas seus olhos demonstravam o horror de se ver articulado, caminhando errante pela oficina, esbarrando nas coisas.

O menino de madeira demorou a entender como suas mãos deveriam funcionar; abria e fechava os dedos olhando para eles assustado. Nunca pronunciou uma palavra que fosse, e basta dizer que é por ser ele de madeira, imediatamente cai por terra a pretensa explicação, já que ele tampouco deveria estar vivo.  Ainda assim, assim foi... e o velho passava seus dias ensinando o menino de madeira a caminhar, empunhar coisas, fazer pequenas tarefas. E ele ia aprendendo a manusear as ferramentas do velho, a correr pelo pátio... e parecia nunca se cansar. O sorriso desenhado em seu rosto e os olhos de contas eram como uma máscara imposta e que em nada lembra o que ele realmente sentia.

Apesar de não falar, o menino ouvia e parecia entender o que o velho dizia. Sempre no fim da tarde, ambos sentavam em uma colina de onde se podia ver o por do sol. De lá, o velho contava suas histórias, de como veio parar ali, de como achou a árvore que resolveu por abaixo para construir seu boneco e, mais importante, de como o menino-boneco finalmente ganhou vida. E o menino de madeira com a cabeça no peito do velho ouvia-lhe a respiração profunda, o coração batendo cada vez mais fraco. E parecia ouvir nele uma vida querendo ser liberta.

Um dia, perto do horário do por do sol num inverno rigoroso, o menino vinha na direção do velho já sentado na colina. Distraído com o movimento dos pássaros no céu, o velho não percebeu que a madeira feita menino trazia em mãos o seu velho machado. Sem aviso, nem despedidas, mas também sem alegria ou tristeza, o menino golpeou seguidas vezes o marceneiro, cujo assombro no rosto exprimindo o quão inesperado era o gesto rapidamente sumiu, por entre golpes cada vez mais constantes e precisos...

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Isolado por iniciativa própria, o velho jamais foi encontrado. Do menino feito de madeira, nada se pode dizer, já que seus pensamentos são, como sua vida, uma incógnita... De tal feita que não se sabe se agiu por vingança ou gratidão; se foi liberto ou aprisionado naquela forma que não lhe era natural; ou se queria ajudá-lo da única forma que foi ensinado a fazer. Também não se pode dizer que o fez por conta de uma dor lascinante que o acompanhou desde a primeira machadada quando ainda era árvore, ou se pela completa ausência dela... as duas, sensações igualmente lastimáveis. E como ele nunca proferiu palavra, tampouco sabia-se qualquer intenção sua em virar gente de verdade.
 
O que ouviu-se dizer foi que durante muito tempo, o menino de madeira vagou ao redor da casa sem destino, com o sorriso que ganhou sem pedir estampado na face e os braços e pernas tingidos de vermelho... até o dia em que também ele não resistiu e caiu de joelhos para em seguida tombar sobre a relva...



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