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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O fantasma da palavra "aborto".

É com certo enfado que acompanho as discussões fomentadas pelas declarações recentes da ministra da Secretaria de Política para Mulheres, Eleonora Meniccuci, favorável à descriminalização do aborto. Basta uma palavra sobre o tema e recomeça os gritos e vaias dos que simplesmente não querem ouvir, com uma maturidade comparável à uma criança de seis anos. E seus porta-vozes são, como sempre, aqueles que muitas vezes deveriam estar calados. É o caso de Dom José Beneditino Simão, bispo de Assis e integrante da CNBB católica. Não contente por ter passado para a história como um sacerdote delirante ao imprimir panfletos alucinados afirmando que Lula era o novo Herodes em 2010, ele agora é notícia com o comentário de uma fineza impar sobre a ministra Meniccuci: "infeliz, mal-amada e irresponsável". Aparentemente, ele baseou seu comportamento no ensinamento dado pelo próprio cristo, que tratou com fineza igual sua mãe em João 2,4.

O fato é que algumas perguntas, para o terror e confusão de alguns segmentos da sociedade, requerem respostas que não podem ser resumidas em sim ou não. É por isso que quando a pergunta "você é a favor do aborto?" é feita, eu já sei que a pessoa não tem a mínima condição de entender a questão, especialmente colocando-a já sob uma pergunta capciosa. Isso porque a onda new age dos que se dizem contra o aborto (aborto é crime, eles avisam!), partem do princípio que a vida se origina na fecundação, ou como eles gostam de chamar, na concepção. De onde tiraram isso é que ninguém sabe. Nem eles, na verdade, porque basta apertar um pouco e a pérola "ah, mas é o que eu acredito" surge clara como o dia.

Quem diz que a vida começa na fecundação dormiu na aula de biologia. Simples assim. Não há nada evidência alguma fora da especulação causada pelo falatório que garanta isso. A fecundação é feita por duas células reprodutoras cujo pré-requisito necessário é que estejam (surpresa) vivas! Os espermatozóides percorrem um grande trajeto (para eles, claro) até o óvulo formando... uma terceira célula. Essa, por sua vez inicia um processo de divisão interna de células que, a priori, estão tão vivas quanto àquelas que a geraram. É verdade que isso causa um certo desconforto patético aos que querem avidamente fixar um ponto onde a alma é instalada como um programa no casulo em formação.

A vida assim não pode ter começo; ela não inicia de um ponto específico. Isso está fartamente demonstrado por uma série de procedimentos e experimentos. Ela é um processo contínuo de um ser vivo ao outro de transmissão genética. Tem sido assim por gerações, independente se alguns de nós entendem o processo ou não. Da mesma forma, o sol nunca girou ao redor da terra, sempre foi o contrário, embora até pouco tempo todos acreditassem nisso.

Esse conhecimento coloca uma série de questões sob um novo ponto de vista em relação ao aborto; se a vida não "começa" num ponto exato, então espere um pouco... a menstruação mensal das mulheres é um aborto também!! E a masturbação masculina então... um verdadeiro genocídio!!! Esse pensamento paranóico demonstra como a visão dos que não detém conhecimento para o que alegam é falho e superficial.

Sem o tabu social imposto sem reflexão, o processo de interrupção da gravidez pode ter uma discussão mais sadia e sensata. Antes de mais nada, que fique claro, se tem alguém que realmente sofre com o aborto, esse alguém é a gestante que o pratica. Mas claro, a imagem dos que tem os ouvidos vedados a esses argumentam preferem pintá-las no seu imaginário assim:

 Retirei essa imagem e a traduzi livremente daqui. O site em questão se chama pelo direito de decidir

E depois, uma coisa que aparentemente (ou convenientemente) as pessoas que condenam indiscrinadamente essa prática não querem ver é que descriminalizar o aborto não significa que as pessoas serão obrigadas a fazê-lo, nem que está simplesmente liberado para todos. É muita ingenuidade, especialmente das pessoas que lidam com saúde pública e pensam assim, achar que a questão se resolve nisso. A decisão de interromper a gravidez não é fácil, deixa sequelas e com certeza necessita de apoio psicológico para que seja feita. O que essas pessoas não enxergam é que essa criminalização sem sentido (já que a vida não começa num ponto específico, mas é um fluxo contínuo) é que essa situação força o grande número de abortos clandestinos, feitos em clínicas suspeitas, quando não em casa, com agulhas de tricô, por exemplo.

A verdade é que não me cabe decidir se fulana ou beltrana podem ou não interromper a gravidez. O corpo é dela, ela sobretudo e talvez os seus próximos é que devem decidir isso. Porque nada é mais terno que uma criança recém nascida, mas nada é mais deprimente que uma mulher com oito filhos sem poder sustentar a si própria. Ou só com um, mas indesejado. Afinal, a questão não se resume entre os humildes de posses. Quantas famílias eu conheci com aquele ranço velado de uma gravidez que teve, obrigatoriamente que seguir seu curso; de pais que não se separaram ainda por causa desses filhos, daqueles para quem o relacionamento estava no começo e não tinha chance de prosperar, mas aí surge um filho indesejado que mudaria do avesso a vida deles até o fim. A amargura, o ressentimento, a sensação de culpa que algumas dessas pessoas devem sentir quando pensam que talvez tivesse sido melhor interromper a gravidez, mas que desejar isso faz dela uma criminosa e imoral aos olhos dos formadores de opinião atuais.

Não tenho dúvidas que provavelmente muitas dessas mulheres optarão por ter essas crianças com sérias propensões à marginalidade social nessas condições. Mas para aquelas que desejarem a interrupção da gravidez, com o acompanhamento certo, em condições médicas seguras,  como eu, da minha casa confortável e aquecida, mesa farta e  filhos criados, mas acima de tudo, sem ter absolutamente nada a ver com a vida de quem quer que seja, posso lhe condenar? 
     

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