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domingo, 30 de dezembro de 2012

A Índia em todos nós...

Em cada cultura, é possível ver traços que ajudam a compor o que de fato somos. Cada uma das particularidades da vivência de povoados que se transformaram em cidades no decorrer do tempo representam, antes de ações individuais que nada teriam a ver com outras culturas distantes, uma oportunidade de nos conhecer melhor enquanto espécie sob condições diferenciadas. 

As palavras de Martin Niemöller esvoaçavam na minha cabeça enquanto lia as últimas notícias na Índia sobre a estudante de 23 anos que foi brutalmente espancada e estuprada coletivamente num ônibus. Niemöller foi um pastor luterano alemão que era inicialmente a favor do regime nazista como a maioria dos clérigos e religiosos de então, e atribuía a culpa das atrocidades sofridas pelo povo judeu aos próprios, sob o cansativo argumento que teriam matado "nosso senhor jesus cristo". Acabou que ele decidiu voltar-se contra o sistema e foi preso por isso. É autor do conhecido poema que fala sobre o sistema de governo que vai levando os vizinhos por serem judeus, católicos e assim por diante, enquanto o narrador nada faz para impedir por que não pertencia àqueles grupos. Um dia ele se vê só, na iminência de ser preso e sem mais ninguém que fale por ele.

Não é difícil encaixar essa situação em muitas manifestações sociais ao redor do mundo em todas as épocas. Mas o motivo pelo qual isso me soa constantemente nesse caso da Índia é a proporção da indignação que toma conta das ruas. Basta ler um pouco sobre a cultura local para saber que estupros em mulheres ocorrem diariamente lá e poucos são noticiados. O motivo está diretamente ligado ao costume aparentemente abraâmico ainda de não dar voz à mulher. A família escolhe com quem ela se casa, o marido e a família dele escolhe onde ela vive, com que roupas; obviamente é mais fácil agir enquanto ela ainda é criança (a idade preferida de culturas e religiões para se propagarem), e com frequência, meninas são casadas com velhos. Entretano, se ficam viúvas são absolutamente proibidas de se casar de novo, e os bens do seu finado ficam com os pais. Mal andam nas ruas, não tem voz ativa; além disso, exames que identificam o sexo do bebê foram proibidos pelo governo para evitar que, sendo menina, sejam mortas ainda como feto.

Como se sabe, seis homens, numa demonstração clara da nossa origem bárbara, atacaram a tal estudante com uma barra de ferro e a jogaram fora de um ônibus em movimento. Ela faleceu em Cingapura, para onde foi oficialmente transferida devido ao estado dos ferimentos. Entretanto, a transferência pode ter sido para que não morresse em território indiano e aumentasse ainda mais a comoção popular. Mas que comoção popular?

Bom, aqui é que fiquei intrigado. Como uma sociedade que zela tão cuidadosamente de normas tão absurdas para qualquer pessoa racional se indigna quando alguns homens criados sob a sua tutela resolvem "cobrar o que é seu por direito"? Não são os homens os melhores? Não foi pra eles que tudo em volta foi criado, cabendo a eles decidir o destino de suas esposas sem que delas se saiba o que pensam? Não é a mulher pior que um objeto, constantemente discriminada, um peso para suas famílias por simplesmente existir?

Aparentemente, somos mais complexos ou mais simples do que pensamos; basta escolher um deles, ou ambos, se preferir. Sócrates era um dos grandes filósofos gregos que gozava de grande prestígio em seu tempo, mas foi condenado à morte precisamente por isso. Coriolano era um grande general romano, coroado pelo povo como um herói de guerra numa grande comoção popular, mas bastou uma pequena manobra e seria expulso e condenado a vagar sozinho como um sem pátria. Jesus, o nazareno, foi recebido com palmas num dia e crucificado outros depois. E a lista segue, incessante, até nossos dias. Nesse caso, temos também o efeito inverso: uma mulher é estigmatizada como o que de pior pela cultura que pertence num dia; conhece a dor, a humilhação, a violência sem limites ou escrúpulos e falece para, dias depois ser considerada a "Filha da Índia" pela mesma sociedade que legou sua condição fatídica.

Alemãos, judeus, indianos, gregos, romanos, judeus de novo; somos todos separados por estigmas culturais e de convivência. Adotamos idiomas diferentes, costumes diferentes e evoluímos diferentemente. Mas essas diferenças escondem nossa fragilidade, que é a mesma. Escondem o desejo infinito que temos de amar, só comparado ao igualmente infinito desejo de causar dor ao outro. Somos previsíveis e inconsequentes demais.

A vida de rebanho faz com que valores não sejam questionados. Quem consegue perceber as formas sutis que essa expectativa social abre, penetra mais profundamente no pensamento coletivo. Para usar de franqueza, não encontrará nele um grande manancial de conhecimento; é bastante monótono lá, com ideias montemáticas simples, frases de efeito usadas sem que se saiba de onde saíram, quem disse, ou por quê. Mas para aqueles com a predisposção ao poder, dominar esses artifícios o faz o candidato ideal para governar multidões, pastorear rebanhos.

Sociedades vivem anos a fio uma realidade que não lhes agrada em geral, mas que os favorecidos parecem se esforçar por perpetuar. Via de regra, só serão transformadas quando os favorecidos mudarem de lado na equação. Ou... por meio de um gatilho social; um estampido, uma chama inicial, a fagulha que incendeia a pólvora coletiva das amarguras sem solução, das preces não atendidas, das noites mal dormidas. Mas ainda assim, os oportunistas estão especializados há séculos nessas manobras, e tomado o castelo e derrubado o rei, todos querem voltar às suas vidas normais e deixar alguém tomando conta.

É impossível prever que tipo de movimentação casos como esse permitirá. Pode ser o estampido para a guerra entre a tradição atrasada e medíocre e um desejo de mudança que espreita há tempos adormecido. Ou mais um passo, mais uma gota de um copo que parece aumentar convenientemente de tamanho para evitar o transbordo.

Pode-se dizer com segurança, porém, que a mulher assassinada não foi uma revolucionária; foi uma vítima de um sistema preguiçoso por rever suas ideias. Não foi a primeira, nem será a última.  






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